O jornalismo e o mundo cão



Trabalho na mídia há mais de 40 anos. Comecei muito novo e de cara quase desisti quando, na semana do Natal de mil novecentos e setenta e tal, trabalhando numa rádio popular um de meus chefes me mandou fazer uma reportagem tipicamente mundo cão.

Puro sangue, desgraça, tragédia, tipo “Homem decapitou a mulher a machadadas e jogou a cabeça no canil”. Saí para fazer a tal matéria mas, na verdade, peguei um ônibus, a barca e voltei para casa. Escrevi uma carta para o chefe comunicando que havia jogado a toalha, que não era esse tipo de jornalismo que estava em minhas intenções e, por isso, voltei a estudar com a cabeça voltada para a medicina.

O que eu não esperava é que o tal chefe ligaria para a minha casa querendo conversar. Na minha família ninguém sabia que eu estava pulando a cerca, traindo a medicina, me enroscando com mídia, jornais, rádios e por isso dei sorte de atender o telefone. O chefe queria conversar. Fui lá na redação e voltei a trabalhar, mas na editoria de cidade, mais tarde cultura, mas, logicamente, sempre que acontecia uma tragédia monumental todo mundo entrava na história. Cobri várias. Várias. Mas sempre distante do sensacionalismo, dos jornais que quando esprememos jorram sangue.

Por isso fiquei mobilizado quando, ano passado, assisti na TV Globo um boletim ao vivo do colega Márcio Gomes, direto das Filipinas. Quando ele disse que estava faltando água e comida também para jornalistas, quase liguei para Cezar Motta, amigo e ex-colega (foi meu chefe na Rádio JB AM, lendária, nos anos 1970) porque o Marcio estava descrevendo uma situação que a maioria de nós já viveu: é quando o narrador vira personagem. Tive a sorte de ter tido chefes como Cezar Motta, Ana Maria Machado e monstros sagrados do jornalismo ao vivo como Eliakim de Araújo, que muito me ajudaram a buscar, sempre, a ética, a verdade, o respeito.

A barra é muitíssimo pesada em situações como a das Filipinas ou da tragédia das serras aqui no Estado do Rio há três anos. O rosto do “monstro” é hediondo. Você fica andando entre corpos, escombros, na esperança de poder dar uma boa notícia, mas nada (ou pouco) acontece. E a situação só piora, só se agrava, os saques, os crimes paralelos, as noites “dormidas” em cima de papelão e o desespero que transforma todos em saqueadores já que a fome de sobrevivência é maior e muito mais avassaladora do que conceitos éticos.
O que estranho é um desejo que bate na gente de querer estar lá, mesmo em condições sub-humanas para exercer o jornalismo. Há quem chame esse desejo de vocação. Pode ser. Quando o Japão viveu aquele tisunami (a usina de Fukushima quase acabou com tudo), o colega Roberto Kovalick também passou o maior sufoco, com a diferença de não estar cercado por milhares de esfomeados dispostos a, literalmente, come-lo vivo em prol da sobrevivência.
Esse tipo de jornalismo é limpo, necessário, útil. Nada a ver com o mundo cão. Esse tipo de jornalismo ajuda, controla a fome de algumas autoridades que só pensam em garfar verbas internacionais, enfim, é uma atividade brilhante.

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