“Existem homens presos na rua e livres na prisão. É uma questão de consciência” (Mahatma Gandhi)
Na
noite deste domingo assisti o documentário “Who Killed Nancy”, no
Canal Bis
(devia se chamar TV Oasis),
sobre a morte do ex-baixista da banda punk
inglesa Sex Pistols, Sid Vicious (John
Simon Ritchie),
aos 21 anos
e de sua namorada Nancy Spungen, 20.
Em
outubro de 1978 ela
foi encontrada morta num
banheiro em
Nova Iorque
a culpa caiu sobre Sid, acusado
de tê-la matado. Viciado em heroína e cocaína, Sid raramente foi
visto
lúcido desde que entrou no Pistols em março 1977 no lugar de Glen Matlock. Fundada em 1975 em Londres a banda durou até janeiro
de 1978,
e, é lógico, o filme coloca em questão do chamado “uso abusivo”
da liberdade.
Como todo mundo previa, Sid
morreu de overdose de heroína em fevereiro de 1979, antes de ser
julgado pelo suposto crime. Mas é lógico que procurava a morte,
como ele prório deixou claro em sua última entrevista, mostrada no
documentário. O jornalista perguntou “onde você gostaria de estar
agora?” e Sid responde “embaixo da terra”.
Liberdade?
Estou relendo “O Homem e seus
Símbolos” (1875-1961), clássico do psicanalista Carl Gustav Jung,
que aborda em profundidade a questão dos arquétipos, delírios,
possibilidades, barreiras existencais quase instransponíveis.
O maior feirão de fantasias da
história da civilização está a poucos centímetros de pelo menos
3,5 bilhões de pessoas que acessam a internet. Ofertas, propostas,
convites, tentações. Por outro lado o medo, o travamento do
politicamente correto, os regulamentos, a castração e, em oposição,
a obsessão de querer realizar o impossível, o utópico, o
inalcansável.
Em 1970 David Crosby compôs uma
canção chamada “Triad” sobre um menage a trois. Um cara e duas
mulheres. Desde o quilometro zero da civilização, menage a trois é
a fantasia de bilhões de pessoas, seja no formato
homem/mulher/mulher, como na configuração mulher/homem/homem.
Sempre existiu. Sempre. Em especial na Roma antiga.
Mas a opressão é tamanha (interna
e externa), que a maioria absoluta das pessoas nasce, vive e morre
com essa fantasia não realizada. Outros fazem pior: contrariando
seus princípios bem sedimentados ao longo de anos, se atiram na
experiência e sabe-se lá como saem do outro lado. Em geral
espatifados, moídos, detonados. Dois filmes do genial Luis Buñuel
deixam essa questão do extremismo existencial (?) bem clara: “A
Bela da Tarde”, de 1967, e ”O Fantasma da Liberdade”, 1974.
As toneladas de liberdade oferecidas
a poucos centímetros de nós revive aquela equação levantada pela
psicanálise: repressão=pervesão=psicopatia social? Em muitos
casos, as fantasias não realizadas (sexuais ou não) se transformam
em patologias porque, até segunda desordem, nosso inconsciente detém
o comando de boa parte de nossas ações ou das “não ações”.
No entanto, como em tese somos saudáveis, temos a “obrigação”
de decidir o que o inconciente deve fazer e, sobretudo, o que não
fazer. Viver fantasias? Qual o problema? Ser obrigado a realizá-las?
Que problemão.
O nome já diz: fantasia é
fantasia. Por que temê-la? Exemplo: paixão platônica, sentimento
alimentado por “prováveis possibilidades” que concretamente não
existem. Que mal há em acordar e dormir pensando numa pessoa que
sequer conhecemos? Mal nenhum. Desde que saibamos tratar-se de uma
fantasia.
Quando uma fantasia começa a se
vestir de neurose é melhor abrir a porta e convidá-la a se retirar
porque a partir daí dá lugar ao padecimento, escárnio, loucura.
Como a cabeça de Cinderela na hora em que a carruagem virou abóbora.
Conviver com fantasias parece ser
saudável desde que não se transforme em mania, obsessão, neura.
Podemos ter fantasias consumistas como um apartamento de frente para
o mar, uma Ferrari na garagem, tudo bem. O problema é abandonar a
vida real trocando-a por um sonho que tem o aroma típico dos
pesadelos. O pesadelo de se sentir na obrigação de concretizar
fantasias impossíveis.
Quem se permite sonhar, divagar,
especular, fantasiar em tese não terá confrontos com a sanidade
emocional/mental. Os que forçam a barra e resolvem realizar coisas
que estão muito acima de sua capacidade de digestão, estão fadados
ao sofrimento. E os que ficam horrizados com as suas fantasias, sejam
de consumo, de viagem (passar um mês no Afeganistão, por exemplo),
de relações afetivas/sexuais também vão se ver nus diante da
loucura.
O fantasma da liberdade cavalga em
todos nós. Seja num roqueiro punk viciado, numa mulher de classe
média que realiza a fantasia de se tornar prostitura depois do
almoço (“A Bela da Tarde”), seja naqueles que acham que
fantasias devem se tornar fatos “custem o que custar”.
Haja cacife.
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