O amor em tempos sem cólera

                                       
As 3:11 (15/06/2015) - Por motivos não alheios a minha vontade meu fuso horário deu uma virada e pelo visto terei uma longa madrugada pela frente. Não gosto de escrever e publicar quando estou emocionado e ontem, domingo, passei o dia tomado pela saudade, ausência, sentindo falta. Por isso, escrevo agora mas só vou publicar quando voltar da pauleira no início da noite.

As 3:14 - O amor é um sentimento tão profundo, tão abissal, tão blues que não conseguimos explicá-lo. Nenhum intelectual das letras conseguiu, nenhum filósofo, sociólogo, antropólogo. Uma vez escrevi num trabalho de faculdade (cadeira de Psicologia Social) que o que mais nos difere dos chamados irracionais não é a inteligência mas a consciência do afeto. O professor não gostou. Conversamos, ele disse que viveu uma experiência num lugar bem perto de uma família de gorilas, o que virou a sua cabeça. Passou a achar que, de alguma maneira, os animais irracionais também tem essa percepção e me deu nota 7. No final do mês a nota tinha subido para 9. Perguntei por que e a resposta veio vaga: “Realocação de conceitos”, ele disse.

Não quis reclamar porque estava apaixonado por uma garota (tínhamos 20 anos, ela e eu) e ingressava mais uma vez na ante-sala do amor comocional, aquele que ignora os raios e vendavais e nos faz rolar por virtuais calçadas encharcadas as nove horas da noite. Era o que faziamos. Um namoro que durou, foi maravilhoso e nele eu tive a possibilidade de viver mais uma vez o amor sem explicações e, sobretudo, complicações. Mas jamais incondicional, papo de existencialista amador. O ser humano é condicional em sua essência.

Mas sabe como é o destino. Ela queria, eu também queria casar, ter filhos, mas o destino nos chamou no centro de uma praça e disse que não ia rolar não. E não rolou. Saímos da praça, eu a levei até a porta de casa em meu Karmann Guia TC bege igual ao da foto (sem banda branca nos pneus), que toda a faculdade conhecia e venerava. Ela desceu do carro, eu também, fomos até a portaria do prédio, nos olhamos (olhos marejados) sem nada dizer apenas ouvindo ao longe, baixinho, o rádio do Karmann Guia TC na Eldo Pop FM tocando o Renaissance, ao vivo em Londres. Não esquecerei a música: At The Harbour, a que ela mais gostava. Sincronicidade. E como a música é a linha de tempo e afeto de minha vida, jamais desvinculei “At The Harbour” dela.

Ela entrou no prédio. Peguei o Karmann Guia TC e resolvi dar uma volta pela orla do Rio. Fui até o final do Leblon e voltei. Em Copacabana parei numa carrocinha da Geneal, comi duas mini pizzas olhando para o mar escuro e mexido (como eu), pensando naquela história de amor que havia acabado. Pensei que o amor sozinho não sustenta, como Machado de Assis já havia mostrado no século 19 e nem quando ela me pediu desculpas em prantos consegui reverter aquela sensação estranha, um vácuo chamado “perdeu”. Amor condicional.

Não desisti do amor nem ele de mim. Essa história real, que publiquei aqui ano passado, é uma pequena amostra:

A minha estreia numa praia de nudismo, distante mais de dois mil quilômetros daqui (Rio de Janeiro), quase na linha do Equador, foi inusitada por um único e crucial motivo. Cheguei lá sem saber que era praia de nudismo. Eu e uma namorada alemã que falava mal o inglês e não dizia, sequer, “cerveja” em português. Naturalmente, não falo e nem entendo nada de alemão, meu inglês aprendi com The Who e The Beatles, mas acabei descobrindo que o meu espanhol dá para sobreviver a uma tourada mexicana. O dela também. Foi assim, via espanhol carioca que mantivemos acesa a nossa intensa (e felizmente tensa) comunicação.

O início.

Ela tinha tido uma estafa no Rio, durante um estágio numa rede de TV onde trabalhei. Caiu desmaiada numa ilha de edição, onde, felizmente, a temperatura em geral não passa dos 17 graus. Como já havíamos trocado olhares e aromas pelos corredores, cabotinamente fui lá socorrê-la. Levei ao departamento médico onde vi seus olhos verdes marejados de lágrimas que ela tentava esconder com o cabelo castanho claro muito liso. Linda. Como era (e provavelmente ainda é) linda a editora de imagens da TV de Frankfurt, que veio para cá aprender a fazer TV (somos craques nisso) numa emissora aqui da América do Sul.

Coincidentemente (falando sério) eu também andava estressado e precisava parar. Fui assuntar e me disseram que eu tinha férias vencidas e como havia combinado de levar a alemã ao hotel (estava muito fragilizada), no caminho, a bordo de um táxi sem ar condicionado, falei que ia tirar férias, que estava cansado, escalavrado. Ela perguntou, num espanhol que parecia Richard Wagner esculhambando uma orquestra, onde eu iria passar as férias. Arremessei o lugar te improviso e ela, com aquela disposição de quem nasceu numa cultura que sobreviveu a urgência existencial de duas guerras, disparou: “posso ir com você?”. Saí do hotel dela três dias depois.

Fomos a TV, anunciamos as férias (empolgado falei em casamento com alguns colegas), fomos para o Galeão e vrrruuuuummmmm, escreveria Jack Kerouac.
Praia de nudismo. Estacionei o bugre (o correto é bug, já que Bugre é marca), junto a uma restinga. 26 graus, ventinho bom, céu azul profundo, jangadas no horizonte, gaivotas, coleirinhos cantando, só faltava meu amigo Roberto Menescal aparecer com Nara Leão cantando “O Barquinho”.

Ainda sem perceber que era praia de nudismo, peguei minha dama pela mão e desci uma trilha estreita que desembocava na areia da praia. Na areia, ela estendeu uma canga, ficou nua, correu para o mar manso e mergulhou. Sentei e fiquei quieto. Assim que ela retornasse eu diria que não era hábito brasileiro ficar nu na praia. Moralismo meu? Não. Era ciúme mesmo. Descobri naquele momento que também sou um cara ciumento, uma constatação que me fez muito bem porque a ausência do ciúme na minha vida me transformava numa medusa diante dos outros mortais.

Eu também era (e sou) ciumento, especialmente quando estou apaixonado. E eu não estava só apaixonado pela alemã. Estava louco por ela. Tanto que, na cama, sem camisinha, não tomava cuidado quando ejaculava com sinistras intenções de engravidá-la, o que não aconteceu porque, no meio da noite, ainda no Rio, levantei para fazer xixi e vi as caixa de pílulas na mesinha de cabeceira dela.

Quando ela voltou do mar, linda, linda, linda, esguia, eu já ia repreender mas vi dois casais passando nus. Depois, quatro crianças, dois idosos de uns 80 anos, um sorveteiro e até um salva-vidas. Todo mundo nu. Não me restou outra opção a não ser, constrangido, tirar a sunga também. Ela me pegou pela mão para passearmos na praia e aí eu confessei: “eu nunca fiquei nu em lugares públicos...com exceção dos bordeis que frequentei na adolescência”. Achei que ela iria me ridicularizar. Erro. Ela me deu um beijo. O mais puro e profundo de todos os beijos que trocamos ao longo de nossa tórrida, apaixonada e até ali infinita relação. E veioa ereção proibida naquele lugar, o mergulho de emergência, a gargalhada dela, o meu constrangimento.

Fomos passear pela praia, como todo mundo fazia. Em menos de 10 minutos me habituei com meu corpo nu em público e, meia hora depois, já havia até esquecido que estava sem roupa. O único problema era minha libido que, naqueles momentos pertencia (que maravilha) a minha alemã. Queríamos transar no mar, mas expliquei que praias de nudistas tem normas e protocolos muito rígidos para não se transformarem em esbórnia. Ela concordou. E lá pela meia noite e meia pegamos o bug e fomos para a pousada onde não dormimos até 10 horas da manhã do dia seguinte quando enchemos a cara de tapioca, bolo de laranja, café, abacaxi, pão francês, queijo minas fresco, beijos na boca.

Ficamos 15 dias naquele lugar, explorando outros de bug alugado. Andamos de jegue (de roupa), surfamos de peito (de biquíni e sunga) e fizemos amor sob uma lua nova que nunca vi igual; pálida e quase ofuscada por uma estrela que por pouco não me fez chorar de emoção. Foi nessa hora que pedi para casar com ela. Foi nessa hora que ela aceitou. Foi nessa hora que pedi que ela jogasse as pílulas fora. Foi nessa hora que ela concordou. Foi nessa hora que o mundo se tornou muito pequeno diante da onda que sentíamos. Onda que, provavelmente, nem álcool + maconha + cocaína + heroína conseguiriam proporcionar.

No décimo sexto dia entramos no avião de volta ao Rio. Meu estado de espírito não era dos melhores e comentei com ela. Ela disse que também sentia “um vácuo na garganta”. O avião decolou, ela dormiu no meu ombro enquanto eu tentava ler uma revista, pensando se seria uma boa ideia mudar para Frankfurt e trabalhar como... como...como o que? Não havia como trabalhar em Comunicação em língua alemã, mesmo que eu estudasse o idioma cinco anos.

Chegamos e fomos para o hotel dela, onde passei a morar e rachar a conta até o estágio da alemã terminar, várias semanas depois. E um dia terminou. E naquele dia ela tomou umas 12 caipirinhas no bar Veneziano (Largo do Machado), chorou, acho que também chorei afogado em quase três litros de Coca Cola comum. E ali trocamos as mais sinceras e profundas juras de amor, eu pensando em Machado de Assis, ela em Hermann Hesse.

No dia seguinte, o do embarque dela para Frankfurt aconteceu o que prevíamos mas não confessamos mutuamente: nos transformamos em sonhos. Ela, no meu. Eu, no dela. Sonhos de amor eterno, dedicação integral, pureza, entrega, tudo o que seria possível se eu embarcasse com ela confrontando o desconhecido.

Subi para o deck de observação do Galeão. O Boeing 747 da Lufthansa taxiava arrastando meus pensamentos. Decolou na minha frente, levando a bordo um dos mais profundos sonhos meus. Certamente um dos mais lindos e, quem sabe, possíveis. Mas ela e eu não pagamos para ver. Preferimos transformar aquelas semanas num mito. Mito que arde vivo até hoje.


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