Apaixonado por si mesmo, o ególatra é viciado em seus próprios problemas e vampiriza ideias alheias
Original
publicado em julho de 2013
Ególatra,
segundo o Michaelis: “aquele que cultua o próprio eu; praticante
da egolatria”.
Tempos
atrás encontrei um ególatra na rua. Estava andando rápido pelo
centro do Rio em direção a uma livraria (esqueci
dois livros no balcão)
e o ególatra vinha no sentido contrário. Sozinho,
é claro, porque ególatras são seres socialmente insulares,
consagrados
como malas, cricris, chatos pra cacete que, também viciados em seus
problemas (de quem mais?), tem sempre um na ponta da agulha para
estragar o nosso dia.
“Você
não sabe o que me aconteceu...”, eles começam a cacarejar antes
de destilar seus draminhas cotidianos que burbulham as dúzias,
centenas, milhares. Tanto que os conhecidos desses mamíferos, que
vivem fugindo (deles) por aí, quando são flagrados, por exemplo, ao
telefone ao invés de “alô” perguntam “qual é o problema?”.
Tentei
escapar, mas quase fui atropelado por um táxi. Caí no alçapão que
separava a calçada da rua, obra do VLT.
O cara me encheu o saco por exatos 53 minutos de monólogo, já que
ególatras não conversam, eles ditam regras, procedimentos, normas,
dias, horas, minutos, enfim,
montam seu diálogo interno e
exportam de qualquer jeito. Só se calam quando se sentem saciados.
O
sujeito contou
uma longa história que na verdade pertencia a outra pessoa. Disse
que fez um vitorioso projeto na área florestal
que todo mundo (ou quase todo mundo) sabe que é de autoria de outro.
Só que essa outra pessoa morreu e o ególatra simplesmente
vampirizou o projeto.
Assumiu
como dele, patologicamente convencido que é mesmo dele e até andou
tentando vender para algumas empresas que, alertadas, não fecharam o
negócio. Continua andando por aí, sempre babando ovos, puxando
sacos dos poderosos, milionários, de preferência corruptos. Como
diz um amigo meu “essa laia é como tatu. É só ver um buraco que
entra”.
Ele
se convidou para tomar um café e já que eu estava junto acabei
indo. Estávamos na rua do Ouvidor onde gosto de tomar café em
silêncio, imaginando Machado de Assis, sempre muito discreto e
tímido, sussurrando com seus contemporâneos: Artur de Azevedo, João
do Rio e, quem sabe, Euclides da Cunha. Mas o ególatra não permite
que façamos silêncio.
Falando
(de si) sem parar (problemas,
problemas, problemas) e
papos envolvendo delirantes milhões de dólares, ele pediu o café,
pediu o adoçante, pingou na minha xícara, mas eu estava tão
absorto diante daquele espetáculo imbecil e calhorda que deixei
rolar. Para o ególatra não existe tu-eles-nós-vós-eles. Só
existe o EU.
“Eu
fui ver Roger Waters no Morumbi”, ele disse. “Fiquei na área
VIP e durante vários minutos percebi que Roger tocava olhando para mim.
Já aconteceu isso com você?”, perguntou misturando o cafezinho.
Eu disse que não. Ele fez uma cara de “só comigo porque sou
f*$@#&*%oda, isso não é para qualquer um”.
O
pior da história foi quando ele me confidenciou: “muito entre nós
porque, você sabe, sou low profile, mas Roger Waters me procurou e
pediu que eu ajudasse na escolha do repertório do show”. Doença?
Não. Transtorno mental? Não. É mau caratismo mesmo.
Eu,
eu, eu. “Eu fiz, eu comi, eu fui, eu voltei, eu decidi, eu...cof!
cof! cof!”. O ególatra engasgou com o café quente, teve uma crise
de tosse e golfou na calçada. O dono do bar, grosseiro, não fez por
menos: “porra,
isso aqui não é lugar de bêbado”. O ególatra não reagiu.
Estava transtornado com o vexame. O vexame de ser gente. Gente comum,
que teve uma crise de refluxo, sei lá.
Determinou
que eu pagasse os cafés e saiu correndo, literalmente. O dono do bar
olhou pra mim com uma cara esquisita, resmungou, eu disse “o cara
passou mal, mas não estava bêbado”, o homem deu de ombros e
iniciei o caminho de volta a praça 15 para embarcar no catamarã.
Pensei
no ególatra. O que é pior? Sofrer de baixa estima, se achar um
cocô, um réptil e mesmo assim brilhar, fazer coisas, acontecer ou
se achar um Nero, um clone dos outros, um estelionatário
existencial, uma versão bípede de Zeus e não fazer coisa alguma?
Afinal, 100% dos ególatras que conheço estão existencialmente
falidos. Mulher/homem
nenhuma atura e, no trabalho, são logo despachados porque
rapidamente assumem a postura de “donos do estabelecimento”,
quando na verdade são empregados. Ahhhh, pobre de ti se “xingar”
um ególatra de empregado. Ele vai quebrar o espelho. Na sua cara.
Atravessando
a Baía de Guanabara pensei no sujeito. Não, nada de “coitado, é
uma vítima de si mesmo”. Ao longo da vida prejudicou muita gente.
Roubou propriedades intelectuais, surrou mulheres, bateu em homens
velhos, fez qualquer negócio (em especial os mais imundos) para
chegar onde acha que chegou.
Naquele
momento, em algum lugar do Rio de Janeiro, aquele
homem perigoso, alma perigosa, apaixonado crônico por si mesmo,
procurava a próxima vítima, para
desfiar seus draminhas, delírios, seu nazismo existencial e, de
repente, voar na sua jugular e sequestrar o seu cotidiano.
Cuidado.
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