Santa Infância

Muita gente postando fotos dos tempos de criança no Facebook, em homenagem a este 12 de outubro. Não cuido bem de minha história pessoal, que está espalhada por aí. Nesse aspecto, gostaria de ser mais “marcha soldado”, mais organizado, ter a mão os livros, os cadernos com toda a minha história, meus milhares de textos publicados, mas não.

Minha infância. Lembro muito bem dela porque é na infância que a felicidade plena, absoluta, deixa suas pegadas tatuadas em nós. Acho que só na infância temos acesso a ela, a felicidade plena, porque vivemos nadando no lúdico, nos sonhos, na ingenuidade, na alienação natural, sem o adestramento imposto mais tarde. Minha infância foi em Angra dos Reis. Meu pai era oficial de Marinha e fomos morar na vila de oficiais do Colégio Naval. Eu tinha uns três ou quatro anos. E lá vivi até quase nove.

Meu primeiro colégio ficava no centro de Angra e se chamava “Santa Infância”. Até recentemente tinha o diploma emoldurado em minha mesa de trabalho, mas ele também sumiu. Minha infância está guardada em minhas memórias e envolvem muitos passarinhos, em especial coleiros, tiês-sangue, sabiás, muito mar, pedras, siris, caranguejos e ele, o céu.

Ficava horas e mais horas deitado numa pedra bem perto do mar olhando o céu, jatos voando muito alto riscando linhas retas e brancas naquele azul profundo. A noite, os jatos davam lugar aos satélites, que como estrelas minúsculas cruzavam o espaço. Momentos de felicidade aguda, pura, simples, livre.

Minha infância ficou em Angra. Mora lá, perambula por lá. No amanhecer de um dia qualquer de verão, minha família deixou o Colégio Naval rumo a chamada civilização. Mudamos para Niterói. Lembro que quando saíamos, no carro de meu pai, vi pelo vidro de trás o “meu” coleiro predileto, que cantava forte no alto de um ingazeiro enquanto o sol dava sinais de sua presença. Foi a última imagem de minha infância: o sol nascendo, o ingazeiro, o coleiro. Minha santa infância acabava ali. Foi um duro, cruel rompimento.

O lado B do disco da vida começou a tocar quando entrei em Niterói e tive que entender o que era um apartamento, sem mar, sem cipós, sem árvores, coleiros, apesar do esforço descomunal de meus pais que com muito amor e compreensão fizeram de tudo para nos adaptar, a mim e a meu irmão. Tive que engolir a insegurança pública e a necessidade de ir para o colégio sendo levado por alguém e não sozinho cortando caminho pelo mato. Fui do Cosmos ao caos em poucos dias, mas com o passar do tempo, dos ventos, de amigos como o meu pai (fiel e paciente depositário de minhas aflições), segui em frente e consegui guardar minha infância num precioso cofre sem chave, onde todos tem acesso porque não gosto de levar a vida cercado de senhas.

Mas isso é outro assunto, para outras infâncias, para outros dias da criança.


Comentários

Postagens mais visitadas