Somos todos impublicáveis
Faz sentido um sonho que tive, noites atrás.
Muitas noites atrás. Muitas e muitas e muitas e muitas noites atrás.
Provavelmente nem era nascido.
Sonhei com o filme “Beleza Americana” (está na Netflix),
obra genial de Sam Mendes lançado em 1998, com Kevin Spacey, Annette Bening e
Thora Birch nos papeis principais. Bem, o filme mexeu tanto na minha vida
(literalmente) que comprei uma cópia em DVD para assistir de novo de
tempos em tempos. Mas não assisto porque muitas vezes é melhor deixar
nossos baús trancados, calados, quietos.
A guinada existencial do personagem de Kevin me deixou
boquiaberto dentro do cinema, onde permaneci uns cinco minutos depois que o
filme acabou, completamente abobalhado, besteirão, queixo caído, vendo os
créditos subirem na tela enquanto as pessoas saiam, com o capacete da minha
Suzuki DR 800 no colo; tinha moto naquela época, mas motocicleta deixou de
ser um veículo civilizado, segundo o regulamento.
Pou! No dia seguinte comecei a sentir os bons
sintomas do filme e, mais uma vez, escrevi não sei onde (acho que foi no
Estadão) que o cinema tem o poder de meter uma colher de sopa em nossas
vísceras. O cinema, em muitos casos, faz o papel do inconsciente gente boa
despejado em via pública.
Mas aí mora um problema: somos todos impublicáveis, diz o
regulamento.
“Beleza Americana” me disse “larga essa vidinha e caia
dentro com vigor, tesão e uma boa dose de irresponsabilidade”. Aquilo ficou
martelando em minha cabeça (e a trilha sonora idem) e, meses depois, quando
olhei para trás vi que também tinha dado uma guinada. E que a tal “vidinha”
denunciada em silêncio pelo filme tinha sido substituída pelo vigor da tal dose
de irresponsabilidade.
Respeitei a máxima de que todos somos impublicáveis e
continuei a viver a nova vida calado. Que beleza.
O sonho que tive (concordo com C.G. Jung sobre os poderes
dos sonhos e suas mensagens cifradas) não foi nada demais, mas para mim foi
como se um torpedo de um submarino alemão singrasse o fundo do mar em direção a
um porta-aviões americano, em 1944.
O que fazer? Acessei o You Tube e fiquei
contemplando a beleza que é a instalação que o artista plástico Daniel Wurtzel
fez, baseado na trilha sonora do filme. Imersão total. Beleza mais que
americana.
Absoluta.
Agora é só ouvir os berros do inconsciente e seguir em
frente.
Calado, quieto.