Diálogo interno

Consciente – Gozado, tempos atrás escrevi um artigo apoiando aquela revista francesa quando publicou a charge debochando de Maomé. Lembra? Pois é, publiquei e quase ninguém leu.

Inconsciente – Isso é assim mesmo. Quem tem sul tem medo. O pavor das pessoas é justificável.

C – Lá vem você com essas conversas, como se Jung, Freud e Lacan não tivessem feito o seu rastreamento. Só falta agora arrancar de uma frase solta e sem nexo a máxima “toda a vez que andei na linha o trem matou” e colocar no título do artigo.

I – Será que vale à pena não arriscar e continuar cinicamente submetido a seu comando? E se eu te induzir a colocar essa máxima, que tem zaralhadas de explicações e análises, no título do texto, o que você vai fazer?

C – Alguns riscos valem sim. Eu arriscaria clicar num blog para ler uma opinião favorável a revista francesa e a charge sobre Maomé.

I – Você está diferente hoje. Meio nublado, quase mormaço. Esquisito pra cacete.

C – Ando tão a flor da pele que até beijo de novela me faz chorar.

I – Que gracinha. Só rindo, diria aquele personagem de Rubem Fonseca.

C – Gracinha coisa nenhuma. Se um dia eu conseguir chorar vou te interfonar.

I – Nada que o tempo não resolva.

C – O tempo e o vento. O importante é que continuo no timão de meu destino.

I – Ninguém regula o destino. Nem eu. Ou você deixou de acreditar em inconsciente coletivo?

C – Isso começou a virar papo de intelectualoide inútil. Nós dois já combinamos, tempos atrás, não cair mais nessa cilada imbecil. Mas estar no timão já dá uma força. Esse negócio de “deixa a vida me levar” é conversa de pagodeiro.

I – Provavelmente por isso você não publicou o artigo sobre a revista francesa. Acendeu a luz amarela.

C – Publiquei, sim! Ainda pus uma fogueira da Inquisição ilustrando. Já que você insiste na máxima de que toda a vez que se anda na linha o trem mata, assuma logo a irresponsabilidade irrestrita e vá viver como os existencialistas.

I – Seu livro está quase pronto, né?

C –Vai sair ano que vem. Deixei você falar a vontade. Até agora não sei direito se vai ser bom ou não. Volta e meia eu te xingo de caixa de gordura de minha essência.

I –  Acho bonitinho quando você pensa assim.

C – Aliás, as pessoas deveriam conversar mais com seus inconscientes.

I – Somos muito incômodos porque guardamos verdades ácidas. Por isso preferem nos apagar, ou, como dizem atualmente, deletar.

C – Como assim?

I – Passarinho quando anda com morcego acaba dormindo de cabeça para baixo. Estamos dentro de vocês e continuamos falando. Uma canção do Pink Floyd chamada “Comfortably Numb” descreve exatamente essa situação.

C – The Wall é uma obra prima.

I – Muros. Quando submetidos a traumas muito violentos nos tornamos muros.

C – Que todo mundo tenta derrubar para se libertar. Estou tentando falar fácil para não espantar os leitores.

I – Todo mundo não. Há os que preferem viver em bares todos os dias, o dia todo, tomando cerveja e conhaque, assistindo TV, fumando. Essas pessoas acham que estão nos dando uma rasteira. Só rindo, diria o tal personagem de Rubem Fonseca.

C – Aprendi muito conhecendo um pouco de você ao longo da vida.

I – Obrigado, você também é gente boa e, se tudo der certo, vai pro céu. Pelo menos luta para se livrar das culpas; quase meio caminho andado.

C – E, no mais?

I – Siga. O sinal está verde. Não vê?



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