Aposentados

A última vez que os dois se encontraram foi numa agência do INSS. Estavam sentados aguardando senhas para serem atendidos e é lógico que se reconheceram. Foram vizinhos da adolescência até os 20 anos quando os roteiros existenciais mudaram seus trajetos. E trejeitos.

Valdo e Alcides iam dar entrada na aposentadoria e cada um segurava uma pasta cheia de papéis minuciosamente organizados. Conversavam amenidades. Saudade da rua onde moraram, de um parque, amigos comuns, os que morreram, os que sobreviveram, pipas, balões, o nado, festas juninas, namoradas. Tinham a mesma idade, mas Alcides desde novo era recatado e moralista enquanto Valdo, sempre que podia, pulava o muro de um sobrado para namorar uma arrumadeira.

O assunto não veio à tona, mas Alcides sempre censurou Valdo. Por sua vez, Valdo fingia que não sabia que o amigo o achava “tarado”, “má companhia”, “matador de aulas”, “alma perdida” etc.

Tudo quase resolvido na Previdência, onde deram entrada nos pedidos de aposentadoria, os dois mais uma vez se separaram e passaram mais uns bons de 10 anos sem notícias mútuas. Até o domingo, numa padaria num bairro distante. Valdo tinha levado uma das netas para fazer prova do Enem e decidiu esperá-la. Deixou o carro num estacionamento e foi tomar café na padaria.
Sentado numa mesinha, perto da porta, viu a confusão. A polícia tinha acabado de invadir a casa de um pedófilo. Em seu quarto, acharam uma criança que estava desaparecida, centenas de fotos, vídeos, aquele quadro hediondo.

Valdo resolveu ir ver o que estava acontecendo e seu queixo quase caiu quando reconheceu Alcides. Era ele o pedófilo. Justo ele, Alcides, o moralista, o bom samaritano, membro da TFP- da tradição, família e propriedade, o homem que achava Valdo um perdido.

- Me tira daqui, Valdo! Eles vão me matar!

Alcides reconheceu Valdo que não conseguia esconder o horror. Mesmo assim ajudou a polícia a afastar a pequena multidão que queria linchar Alcides, um velho decrépito, obeso, inchado, provavelmente alcoólatra que nada tinha a ver com o homem bem vestido de anos atrás na agência da Previdência.

Advogado bem sucedido, Valdo prometeu a Alcides que iria a delegacia depois que sua neta acabasse a prova do Enem, mas quando a doce Camila de 18 anos deixou o portão da faculdade onde fizera a prova e se atirou nos braços do avô, emocionada porque tinha ido bem na prova, Valdo decidiu não mais defender Alcides.

Foi a delegacia comunicá-lo. Numa sala reservada, ambos conversaram.

- Não vou defendê-lo porque um monstro como você não pode circular livremente.

- A culpa é da aposentadoria, Valdo! Eu juro que é! Naquele dia na agência você disse que ia se aposentar mas não iria parar de trabalhar porque se parasse de trabalhar iria morrer ou adoecer...lembro bem que eu respondi que tudo o que queria era vestir um pijama listrado, comprar um canário, uma gaiola e não fazer nada...no máximo jogar uma peteca.

- Aqui está o seu hediondo prontuário...culpa da aposentadoria...aquele papo de “cabeça vazia é oficina do coisa ruim”...vejamos, há 20 anos atrás você foi acusado de estuprar a primeira criança nas imediações do sindicato que presidia.

- Eu fui inocentado! Eu fui inocentado!

- Foi inocentado porque esses dois políticos aqui entraram no circuito temendo que você falasse de uma operação financeira ilegal que o seu sindicato estava fazendo para eles.

- Eu fui inocentado!

- Cale a boca! Todo o homem não imbecil sabe que parar de fazer as coisas, “encostar” como dizia uma gíria antiga, adoece e mata, mas não adoece o caráter. Você sempre foi podre, Alcides, mas escondia esse esgoto no moralismo, na UDN de macacão que é o seu partido político, mania de acusar as pessoas de vagabundas das elites. Você teve uma única namorada, com quem casou e se vangloriava disso, se achava um exemplo de comportamento, mas já estava no desvio como mostram essas suspeitas aqui. Foi quando sua mulher fugiu de casa enojada. Você conseguiu enganar até o dia que se aposentou e parou. Quando parou o seu lixo boiou publicamente.

- Eu fui inocentado!

- Se eu pudesse te matava, Alcides, mas não sou assassino. Sou “tarado”, lembra? Sou “má companhia”, “matador de aulas”, “alma perdida”, lembra? Mas não sou assassino.

- Eu fui inocentado! Não me abandone.

Valdo levantou e deixou a delegacia. Os programas de TV estilo mundo cão massacravam Alcides, pediam pena máxima para ele.

Como era previsto por todo mundo, Alcides foi encontrado morto na cela na manhã do dia seguinte. Ao ouvir a notícia no rádio, a caminho do escritório, Valdo lembrou de Alcides.


“A culpa é da aposentadoria!”.

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