Sputinik
O cheiro do mar misturado ao do óleo dos navios arrancam
minha comoção pelos poros. Cheiro de minha infância, vivida entre sabiás,
coleiros e muitos navios de guerra. Muitos. Meu pai à bordo deles. Hélices
misturando o aroma de maresia com óleo combustível, a prudente lentidão da vida
na pequena vila e também no convés cinza chumbo da nau gigantesca.
Como sempre faço, olhei para o céu
à noite antes de entrar no carro. Senti uma emoção diferente com as luzes.
Luzes das estrelas, dos aviões, das torres de comunicação, luzes da
vida. No mar, o aroma da minha infância.
Antes de vir para casa fui até a
beira de uma praia que era deserta até ontem, anos 1980. Parei o carro, saí e
fiquei olhando para o céu. Ignorei o pavor coletivo que recomenda exílio;
entrar e sair rápido do carro porque a cidade está entregue aos bandidos.
Olhando o céu avistei um satélite
artificial cumprindo a sua missão, em órbita constante singrando a Via Láctea.
A emoção me tomou de novo, reforçada pelo ruído suave das ondas pequenas e
distantes, desabando na areia. Aparentemente ilógicas. Aparentemente.
O céu...Num mês de maio, em
pleno outono, que com cinco anos de idade fui levado por meu pai para a praia
da vila onde vivi a infância. Todas as pessoas com binóculos, lunetas e
até um telescópio diziam estar avistando o Sputnik 4, satélite artificial
russo.
Não entendi porque o Sputnik que vi
nas fotos da revistao não tinha nada a ver com aquele minúsculo ponto
luminoso, menor do que todas as estrelas, do que todos os coleirinhos que
cantavam no alto dos ingazeiros e que cortava rápido, bem rápido, o nosso céu.
O Sputnik das fotos não era um ponto, mas uma pequena esfera de metal. Eu vi.
Meu pai explicou. Falou da
distância, da luz do sol incidindo na esfera, falou do céu, das estrelas, falou
de novo dos satélites artificiais, do seu brilho fixo, oposto ao cintilar
eterno das estrelas. Falou, falou, falou e recitou um poema. Meu pai recitou Olavo
Bilac:
"Ora direis ouvir estrelas!
Certo
Perdeste o senso!" E eu vos
direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez
desperto
E abro as janelas, pálido de
espanto...
E conversamos toda a noite,
enquanto
A via-láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso
e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.
Direis agora: "Tresloucado
amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão
contigo?"
E eu vos direi: "Amai para
entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender
estrelas."
Não entendi nada sobre a incidência
da luz, o tamanho do Sputnik, gravidade, força. Mas ali, naquela noite de 15 de
maio de 1960, meu pai me ensinou a ouvir estrelas e a perceber os aromas do
mar.
E nunca mais esqueci.