Fiador existencial
O cara é baba-ovo, invejoso, rancoroso, arrivista e
desses que não pagam a ninguém na maior cara de pau. Aí chega alguém e pergunta
se você conhece o tal meliante. Você já o viu e até conversou com ele algumas
vezes, mas por força de expressão acaba dizendo que “conheço sim”. Ferrou! Sem
querer, virou avalista de um canalha. Melhor seria dizer, apenas, que “conheço
de vista”, mas os hábitos da fala as vezes nos metem em roubada.
Por ato reflexo dizemos que “conheço” quem vimos algumas
vezes. Pior: em muitos casos estabelecemos relações pessoais e profissionais
com pessoas que não conhecemos sem tomar o cuidado de pedir referências a
terceiros. Ingleses e japoneses tem esse hábito. Só fazem negócios ou se
relacionam com pessoas quando três, quatro ou cinco pessoas de confiança
confirmam que a tal pessoa é do bem, honesta e tudo mais.
Por exemplo: não conheço nenhum Babalu, apesar de um
colega, que encontrei no catamarã, ter insistido em me mandar um “abraço do
Babalu”. Sabe aquele sono eventual que bate depois do almoço, você entra num
catamarã vazio e fica ao sabor da brisa? Foi o que planejei naquela tarde.
Corta! Encontrei o conhecido na chamada “fila do gado”,
aquela que o povão forma para entrar na embarcação e posso afirmar do fundo do
coração: o cara é chato pra cacete. Mas, fazer o que? Ele se aproximou, colou
em mim e sentou a meu lado.
E tome a falar do tal Babalu que, segundo ele, é meu
amigo de infância. Mentira porque passei minha infância em Angra dos Reis, não
havia nenhum Babalu e, de lá, todos os meus amigos se espalharam pelo mundo.
Eu não estava a fim de discutir, apesar de ser
rigoroso com esse papo de “fulano é seu amigo”. Não é assim. Muitas vezes
já me perguntaram “você conhece Fulano?”, e respondi, com elegância, “não,
conheço só de vista”. Como disse lá em cima, dizer que conhecemos alguém nos
transforma em fiadores existenciais/morais do “conhecido”.
Não é o caso do sujeito que encontrei no catamarã que, de
fato, sei quem é, mas saber quem é e conhecer são situações completamente
diferentes. E quando o barco atracou no Rio, confesso que me deixei levar pela
multidão e, propositalmente, me perdi do conhecido que me congestionou com uma
overdose de palavras e frases soltas. Não aguentei ouvir tanta inutilidade
pública e estava vendo a hora que ia pegar no sono no meio do monólogo dele.
Dias antes, fui a uma reunião e, na saída, em frente ao
Museu de Belas Artes, na Rio Branco, encontrei um leitor. Ele estava acompanhado
da mulher, me apresentou e tal. Achei engraçado porque não o conheço e nem ele
a mim, apesar de minhas crônicas e contos, eventualmente, abrirem o buraco da
fechadura. O leitor estava satisfeito, cheio de “Fulaninha, esse aqui é o
LAM...” e a esposa, também constrangida, disse “muito prazer” e tudo ia muito
bem até ele me perguntar para onde eu ia. Temendo que ele fosse para Niterói,
sapequei um “vou até o Rio Comprido resolver uns assuntos”, quando ele rebateu
“pois nós estamos indo para o Leme”.
Encerrado o encontro, quando inclusive me chamou de
“amigão”, fui embora pensando. Pensando nessa profissão maluca que fabrica
conhecidos pelo mundo e até amigos próximos sem que saibamos o que está
acontecendo.
Esquisito pra caramba.