O voo crítico
Desculpe os garranchos. Você
sabe que não escrevo a caneta há mais de 20 anos. Está escuro ainda. Você e
nossas crianças dormem.
Ontem, na cama, vi seus
olhos muito negros levemente marejados, fitando meu rosto. Destilavam uma
dose de tensão, certamente porque hoje, mais uma vez, farei um voo
crítico. Eu ia começar a explicar o inexplicável mas você pôs o dedo indicador
em meus lábios. Não queria ouvir nada sobre voos críticos. Eu também não queria
falar nada sobre voos críticos, mas fique certa de que não existe voo militar
em missão que não seja muito crítico. Não minto, não omito.
Seus dedos estavam frios
como na segunda noite que saímos, anos atrás. Você pegou na minha mão para
atravessarmos uma tórrida avenida de Manhattan no auge do calor. Senti o seu
suor. Depois, meio sem jeito, ensaiou me explicar porque de vez em quando
gelava ao atravessar uma avenida movimentada. Eu disse que você não precisa me
explicar nada. Só precisa sentir sem receios.
Com o passar do tempo, de
voo crítico em voo crítico, você foi me convidando a precisar de você. E cada
vez mais pegava em minha mão para atravessar as avenidas sinalizando que também
é gostoso precisar de mim. Depois daquela festa engraçada que você
fez com as suas amigas aqui em casa você chegou e disse “sabia que eu te amo?”.
Eu não sabia, mas foi uma delícia ouvir. Nunca sei se sou amado e você sabe
disso. Adoraria ouvir todo dia, toda hora. Mais ainda porque não havia nenhum
voo crítico programado.
Pensei em deixar apenas
um cartão. Mensagem curta. Mas os seus dedos frios de ontem, a sua incerteza, a
sua presença me trouxeram um gigantesco orgulho. Orgulho de pertencer a sua
vida, reafirmar a sua importância. Mesmo que seja breve. Relações também são
voos críticos.
Quando nossos fios
desencapados dão curto circuito e a gente se aborrece um com o outro - e os
voos críticos já causaram alguns desses desentendimentos - o amor sempre
impera. Não suporto ficar cinza com você, nem por cinco segundos. Parece que
deixo de existir até a gente se olhar de novo.
A manhã está escura, neve lá
fora e o voo será crítico. Confie nele, no destino, na nossa história e, se
der, confie em mim porque amanhã ao meio dia estarei de volta para pegar você e
as crianças no colo e, juntos, celebrarmos a chegada do novo ano. Aliás, hoje
será o meu último voo crítico como Comandante. Não farei mais.
Presente de ano novo para
nós.
Klint.