Tempero da Somália


Na zona portuária só existiam duas estações: quente e muito quente. O fedor das vielas era nostálgico, subidas e descidas com paralelepípedos, bicheiros, anões vendendo bilhetes de loteria (diziam que anão dava sorte) e no alto da ladeira, fincada numa calçada quase destruída ficava a pensão “Tempero da Somália.”

Na porta, um quadro negro vertical escrito a giz exibia o cardápio do dia. Mocotó, feijoada, dobradinha e uma vez por mês rabada com agrião. O ambiente era pesado, todo mundo com o olhar suspeito, calombos na cintura. Armas.

No verão, mais de 40 graus e o dono era alérgico a vento e frio. O dono era um neto de japonês que chegou ao Brasil fugido das Filipinas. Como era ilegal pagava propina todo o mês para se manter intocável.

Era conhecido como Tijolo, apesar de não ter mais de 1m58, magrinho, não falava com ninguém, não esboçava qualquer expressão. Só aceitava dinheiro e não dava troco porque para ter troco tinha que ir a banco e ir a banco como ilegal era um risco. Chamavam de Tijolo porque logo que chegou num navio panamenho se hospedou um cortiço nas imediações do porto. Todos os dias as sete da manhã, meio dia, seis da tarde e meia noite, um homem de bicicleta passava pela viela latindo alto, muito alto. Ninguém mexia com ele porque dava trabalho. Mas Tijolo não suportava ser acordado pelos latidos e, numa manhã, esperou o homem atrás de um poste e deu várias tijoladas na cara, nuca, genitália. Matou o homem. Gastou sua já parca reserva financeira subornando a polícia.

Abriu “Tempero da Somália” com o dinheiro de dois sujeitos que não conhecia mas que precisavam de um refúgio eventual. Tijolo nunca quis saber porque, de vez em quando, os dois entravam na Somália esbaforidos e se escondiam num banheirinho escuro, nos fundos. Todos os comensais fingiam que não viam.

Perguntaram a Tijolo, sem falar Tijolo porque Tijolo não gostava que o chamassem de Tijolo, por que o nome “Tempero da Somália”. O que diz a mitologia da região é que após ouvir a pergunta, Tijolo começou a vomitar e, aos prantos, entrou no banheirinho chorando chorando chorando e só saiu no dia seguinte. Os frequentadores diziam que “deve ser dor de corno”, mas por via das dúvidas nunca mais ninguém perguntou nada.

Alheio as brigas dentro do estabelecimento, com navalhadas, facadas e punhaladas (Tijolo proibia tiros para não atrair polícia), ele ficava junto a uma caixa de manzanas argentinas que funcionava como caixa. Lia edições atrasadas do Asahi Shimbun enquanto o sangue muitas vezes espirrava nas paredes, que depois dos duelos Tijolo obrigava o vencedor a limpar e também se livrar do corpo.

Alguns anos depois, quatro homens assaltaram um banco e foram almoçar. “Tempero da Somália” estava fechada. A notícia se alastrou, muita especulação. Tijolo morto? Tijolo preso? Tijolo...uns diziam que Tijolo fora visto num Armazém do porto onde teria embarcado num navio para Mogadíscio, já outros garantiam que ele tinha ido para a Praça 15 onde pegou uma barca para Paquetá.


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