Ecos de "On The Road"

Studebaker
                                                          Ford Taurus

Viajava muito com o meu pai, especialmente para Teresópolis. Ele contava que no início dos anos 1960, a bordo de pequenos carros importados com motores refrigerados a água, era forçado a parar duas ou três vezes nos acostamentos, depois batizados oficialmente de "refúgios". Era para baixar a temperatura da água do radiador. Subir a longa serra naqueles tempos, naqueles carros, exigia paciência e, sobretudo, tenacidade. O bravo Fusca acabou com esse problema, mas o carrinho custava caro.

Quando o presente nos espreme com suas garras não virtuais é natural que busquemos os acostamentos e refúgios do passado; esperar até os coquetéis molotov sossegarem.

Foi numa virtual escapada dessas que lembrei de meu avô paterno, que ao contrário das descrições românticas e lúdicas que em geral são feitas, era um cara marrento, sisudo, anti-social. Mas eu o adorava porque ele adorava os netos. A maneira dele.

Passei a infância em Angra dos Reis e era para lá que meu avô ia descansar de vez em quando. Sempre com um carro novo. Era apaixonado por automóveis. Eu tinha uns sete ou oito anos quando ele apareceu com um (pasmem!) Studebaker 1955 cinza-chumbo, carro de design tão ousado e atrevido para a época que não colou. Eu me apaixonei por aquele carro e ficava horas olhando, olhando, olhando até ouvir a frase mágica do meu avô: "vamos até o centro para comprar umas coisas". E passeávamos no Studebaker sob o olhar assombrado das pessoas.

Numa dessas incursões, fumando seus indefectíveis charutos ao volante, meu avô virou para mim e disse "você vai ser um apaixonado por automóveis." Na mosca. Se fosse colecionador compraria hoje um Ford Taurus (de 1997 até o início dos anos 2000) porque na minha cabeça ele reviveu a saga do Studebaker. Design atrevido, ultra moderno, que também teria assustado os consumidores nos Estados Unidos. O Taurus foi uma das estrelas do genial filme "O Show de Truman" (1998) de Peter Wir, estrelado por Jim Carrey que mereceu, sim, o Oscar. Mereceu, não levou e Jim Carrey ficou indignado. Com razão.

Essa conexão meu pai-meu avô-carros-o show de Truman-coluna sobre carros faz sentido e me atira do clássico romance "On The Road", de Jack Kerouac, cujos ecos me inspiram, apesar de minha nula ligação com o estilo de vida dos beatniks - https://pt.wikipedia.org/wiki/Beatnik .

Como o maravilhoso coice chamado "O Uivo", de Allen Ginsberg, poema que atirou a América boçal e macartista contra o paredão da sua própria alienação, caretice e ignorância, em 1956. Os beats parecem querer dizer em sua aflição, asfixia e angústia que as causas nem sempre geram efeitos. Causas podem não causar nada. Ou não? Logo, quando vamos ao passado, há uma causa. Ou efeito?

O Stubebaker é a cara do movimento beat, como dá para perceber logo nas primeiras leituras de "O Uivo", lançado em San Francisco, Califórnia.  Ginsberg foi preso por "atentado violento ao pudor" e julgado. Absolvido (se fosse no Texas ia arder na cadeira elétrica) disse a imprensa: "Uivo é uma unidade de respiração única. A minha respiração é longa — isto é a medida, uma inspiração física e mental do pensamento contido no estiramento de uma respiração."
Na época, pouca gente entendeu. Só uns poucos tinham a coragem de ler (e, principalmente) ouvir "O Uivo" de ponta a ponta porque a constatação de que outra América, menos boçal, precisava ser descoberta urgentemente incomodava. A mesma América do Studebacker e do Taurus.

Todo mundo tem o seu Uivo. O meu é abafado mas existe, contrariando um outro herói de cabeceira, Marshall McLuhan, eventualmente não acho que o meio seja a mensagem. Simplificando, discordo que a mídia gere notícias. Até segunda desordem, a mídia é eco e não som, mas como Allen Ginsberg chegou a dizer que o seu Uivo podia ser chamado de tudo "até de mídia pífia e vagabunda"; no caso o meio era a mensagem, sim, como esse texto aparentemente sem pé, mas totalmente sem cabeça.


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