Grades invisíveis (?)
Estou relendo “O Homem e seus Símbolos” (1875-1961),
clássico do psicanalista Carl Gustav Jung, que aborda em profundidade a questão
dos arquétipos, delírios, possibilidades, barreiras existenciais, o poder
esclarecedor dos sonhos. Jung rompeu com seu mentor, Freud, que via no sexo a
causa (direta ou indireta) de todas a neuroses. Jung não concordava, tinha uma
visão mais voltada para o trabalho do inconsciente, onírica, etc. Mas, posso
falar? Leigo que sou, desde a adolescência usuário de psicanálise de várias escolas,
sempre achei que neste quesito Freud tinha razão. O sexo é a essência da vida.
Ponto.
Dele depende, inclusive, a sobrevivência do amor. Ponto.
O maior feirão de fantasias da história da civilização
está a poucos centímetros de pelo menos quatro bilhões de pessoas que acessam a
internet. Ofertas, propostas, convites, tentações. Por outro lado, o medo, o
travamento do politicamente correto, os regulamentos, a castração e, em
oposição, a obsessão de querer realizar o impossível, o utópico, o inatingível.
Em 1970, David Crosby compôs uma canção chamada “Triad”
sobre um menage a trois. Um cara e duas mulheres. Desde o quilometro zero da
civilização, menage a trois é a fantasia de bilhões de pessoas, seja no formato
homem/mulher/mulher, como na configuração mulher/homem/homem. Sempre existiu. Em
especial na Roma antiga.
O erro é que contrariando a sua natureza, tem gente que
se atira nessa experiência e sabe-se lá como saem do outro lado. Em geral
espatifados, moídos, detonados. Dois filmes do genial Luis Buñuel deixam essa
questão do extremismo existencial (?) bem clara: “A Bela da Tarde”, de 1967, e “O
Fantasma da Liberdade”, 1974.
As toneladas de liberdade oferecidas pelo computador a
poucos centímetros pode reacender aquela equação levantada pela psicanálise
tradicional: repressão=pervesão=psicopatia social. Pode reacender, ou não? Em
muitos casos, as fantasias não realizadas (sexuais ou não) se transformam em
patologias porque, até segunda desordem, nosso inconsciente detém o comando de
boa parte de nossas ações ou das “não ações” e como, em tese somos saudáveis,
temos a “obrigação” de decidir o que o se deve fazer e, sobretudo, o que não
fazer. Viver fantasias? Qual o problema? Ser obrigado a realizá-las? Que
problemão.
Fantasia é fantasia. Por que temê-la? Exemplo: paixão
platônica, sentimento alimentado por “prováveis possibilidades” que
concretamente não existem. Que mal há em acordar e dormir pensando numa pessoa
que sequer conhecemos? Mal nenhum. Desde que saibamos tratar-se de uma
fantasia.
Quando uma fantasia começa a se vestir de neurose é
melhor abrir a porta e convidá-la a se retirar porque a partir daí entram os
perversos personagens, padecimento, escárnio, loucura. Como a cabeça de
Cinderela na hora em que a carruagem virou abóbora.
Conviver com fantasias parece ser saudável desde que não
se transforme em mania, obsessão, neura. Podemos ter fantasias consumistas como
um apartamento de 20 suítes de frente para o mar, um Aston Martin na garagem,
tudo bem. O problema é abandonar a vida real trocando-a por um sonho que tem o
aroma típico dos pesadelos. O pesadelo de se sentir na obrigação de concretizar
fantasias impossíveis.
Quem se permite sonhar, divagar, especular, fantasiar
provavelmente não terá confrontos com a sanidade. Os que forçam a barra e
resolvem realizar coisas que estão muito acima de sua capacidade de digestão, estão
fadados ao sofrimento, condenados a viver atrás das grades invisíveis (?). E os
que ficam horrorizados com as suas fantasias, sejam de consumo, de viagem
(passar férias na Síria, por exemplo, só para dar uma de exótico descolado), de relações afetivas/sexuais também vão
se ver nus diante da loucura.
O fantasma da liberdade cavalga em todos nós. Seja num punk
junkie, numa mulher rica que realiza a fantasia de se tornar prostituta de
bordel depois do almoço (“A Bela da Tarde”), seja naqueles que acham que
fantasias devem se tornar fatos “custem o que custar”.
Como se não custassem nada.
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