Liberdade: calça de veludo ou lorto de fora
Em novembro de 1937 os militares de Getúlio
Vargas incendiaram 1.694 livros de Jorge Amado numa praça proxima ao elevador Lacerda, em Salvador.
Vargas incendiaram 1.694 livros de Jorge Amado numa praça proxima ao elevador Lacerda, em Salvador.
Mais cedo caminhava pela Gávea, olhei
para o céu, para o sul e nem sinal de chuva. Foi quando lembrei que o
famigerado Estado Novo do ditador Getúlio Vargas proibia a divulgação de
temperaturas acima de 40 graus. Rádios e TVs que noticiassem que a máxima tinha
atingido 40 graus e um décimo, em qualquer ponto do território nacional
(inclusive na adorável Bangu), corriam o risco de serem multadas, ou cassadas.
Por que? Porque naquela época a legislação trabalhista obrigava que todos os
empregados fossem liberados quando a temperatura ambiente passasse dos 40
graus. Por isso, sempre fazendo meia com o poder, empresários foram a Brasília
conversar e, em 1969, no bojo do AI-5, mantiveram a proibição getulista que,
cínica, era “informal”. Informal é o cacete.
O site “Plenário MT” publicou um artigo, que comenta:
“(...) Em 1955, com o clima político fervendo por causa da eleição de JK e de
um movimento golpista para impedir sua posse, o filme “Rio 40 graus”, de Nelson
Pereira dos Santos, foi censurado pelo então chefe de Polícia, um coronel, que
proibiu a exibição da obra em todo o território nacional.
Além de acusado de promover “a desagregação do país”, por
ser comunista e apresentar apenas os “aspectos negativos da capital
brasileira”, “Rio 40 graus”, marco precursor do Cinema Novo, era chamado de
“mentiroso” pelo militar, alegando que aqui a temperatura nunca ultrapassara 39
graus. O ato truculento e ridículo provocou uma das maiores ondas de protesto
de artistas e intelectuais, liderados por Jorge Amado, enquadrado também por causa do seu clássico "Dona Flor e seus Dois Maridos", principalmente pelo triângulo amoroso formado por antagonistas: Vadinho,
porrista, vagabundo, mulherengo e Teodoro, médico, sisudo, corretíssimo,
recatado, do lar. A polícia achava que o trio era um atentado a moral e aos bons costumes.
A censura mudou de mãos mas continua aí. Nas redes sociais um
censura o outro. Antes, décadas atrás, um brigava com o outro mas graças a um
acordo “popular” as brigas diminuíram. Criaram o slogan meio machista (mas não sexista,
senhores censores!!!!!!) “não se deve discutir política, religião e mulher. Acaba
em pancadaria”. A “democracia” que vemos nas redes sociais é do tipo “você pode
falar o que quiser desde que seja o que exijo ouvir.” Sim, o tom é autoritário.
Da esquerda e da direita. Quando a censura atinge o topo da montanha de
insanidades as pessoas se bloqueiam mutuamente, e fim de papo. Não sei que democracismo
é esse.
São esses exemplos que me tornam cada vez mais
radical na defesa do amplo, geral e irrestrito exercício da liberdade de
expressão, de ação, de tudo. Liberdade não tem meio termo, água morna, acarajé
sem pimenta, cerveja sem álcool. É calça de veludo ou lorto de fora. Por enquanto, o jornalismo
brasileiro (livre das mordaças em 1985), vive em regime, em tese, de auto
regulação já que não existe meia liberdade, 90% de liberdade, meia virgindade
nem meia canalhice.
Poderosos tem a obsessão de nos empurrar a tal “regulação
da mídia” que eles afirmam não ter nada a ver com censura. Como assim nada a
ver? A imprensa livre dispensa regulação externa. Qualquer tipo de tentativa de
controle, manipulação, freio, é censura. Até segunda desordem.
A liberdade voltou a pauta depois do atentado ao jornal
francês Charlie Hebdo, lá em 2015, que tinha como um dos slogans “um jornal
irresponsável”. Houve muita gritaria. Até o Papa Francisco se meteu no
bate-boca, como mostra essa nota publicada pela BBC:
O papa Francisco defendeu o direito de
expressão, mas disse ser errado provocar os outros ao insultar a religião
alheia (...)
Para ilustrar seu ponto de vista, Francisco
disse a jornalistas no avião papal que seu assistente poderia esperar um soco
se ele xingar sua mãe.
"É normal. Você não pode provocar, não
pode insultar a religião dos outros", disse ele.”
Santidade, discordo totalmente. A imprensa pode publicar
o que quiser, inclusive xingar a mãe, desde que assuma as consequências
judiciais, que fazem parte do chamado jogo democrático. Um jornalista mau
caráter, safado, achacador, moleque, venal pode acusar alguém de corrupto, de
pedófilo, de assassino, mas para isso terá que provar. Com relação a vítima, a
legislação é farta. Um processo por calúnia, difamação e similares, rende
gordas indenizações, prisão, desmentidos e uma série de outros efeitos
punitivos que fazem os jornalistas pensarem duas vezes antes de apurarem mal
uma informação. Mais: existem também penas gravíssimas para o caso de ofensa
religiosa, racial e afins.
Se um muçulmano se sentiu ofendido pelo Charlie Hebdo em
2015, por exemplo, poderia ter entrado na Justiça alegando ofensa,
discriminação, etc e não explodir o jornal matando gente. Em outras palavras, a tal regulação
da mídia já existe e está em vigor no Judiciário de todos os países
democráticos, entre eles o Brasil.
Logo, que as coisas continuem como estão. Que os meios de
comunicação possam seguir livres para informar e, no caso de lambança, levarem
um ferro da Justiça. Essa é a regra básica do jogo e assim deve prevalecer.
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