O filme acabou


Contam os tiranossauros que até uns 20 anos atrás existiu um bípede mamífero, que também já virou petróleo, chamado lanterninha. Ele habitava as salas de cinema, com uma lanterna na mão, fiscalizando e chamando a atenção de quem não andava na linha, jogava galinha viva para o alto, copulava animadamente entre as fileiras de cadeiras ou conseguia penetrar na sala escura arrombando a porta de saída. O lanterninha era um guarda noturno da noite virtual das salas de cinema e foi extinto pelo competente e sempre alerta, obediente, positivo operante autopoliciamento imposto pela sociedade dita contemporânea e suas várias patrulhas espalhadas por aí.

O rico portifólio de lendas urbanas cariocas (queimaram esse portifólio? Por onde anda?) conta uma célebre história que muitos juram que teve como palco a sala escura do cinema Comodoro, na Tijuca. Andei frequentando meio que compulsoriamente o Comodoro por duas razões: namorei uma tijucana na adolescência que, linda e inteligente, merecia os dois ônibus e uma barca que eu pegava para ir e mais dois ônibus e uma barca para voltar, totalizando umas três horas de viagem. No começo foi como todo começo. Praça Sanz Peña, cachorro quente, sorvete, discretos amassos atrás de uma banca de jornal fechada e, reação vulcânica, pegávamos outro ônibus e íamos namorar no Comodoro sem sequer saber que filme estava passando. Menores de idade, sabíamos que o porteiro e o lanterninha do cinema eram menos repressores e fingiam que não sabiam que éramos menores de idade e deixavam entrar.

Lembra que escrevi lá em cima que andei frequentando meio que compulsoriamente o Comodoro por duas razões? A outra razão é que estudava Comunicação Social na Estácio que ficava mais ou menos lá perto. Muitas vezes arranjava uma carona em frente ao Jornal do Brasil (trabalhei anos do Departamento de Jornalismo da Radio JB) que me deixava nas imediações do cinema. Uma dessas caronas quem me deu foi o Zózimo, ele mesmo, Zózimo Barroso do Amaral lendário colunista que dizia, sério, estar visitando “uma iguaria na Tijuca”. E numa das vezes que me deixou em frente ao cinema, comentou “uma escapada nesse Comodoro com a coisinha até que é uma boa ideia...”.

Ir ao cinema dependia...na verdade não dependia de nada. Muitas vezes, em vez de pegar outro ônibus no Comodoro e partir para a faculdade (meu trabalho acabava as 19:30 e as aulas começavam as 19:00, ou seja, já estava atrasado) baixava um “hoje não” e entrava no cinema. Até hoje agradeço a Estácio por ter me apresentado ao Comodoro, onde vi uma montanha de filmes que foram fundamentais em minha formação existencial e, posso falar?, intelectual.

No final do curso, numa dessas decisões de última hora, entrei no cinema e estava passando “Em Algum Lugar do Passado”, de Jeannot Szwarc, com musicão acachapante de John Barry. Com o andar do filme fui afundando na cadeira de tanta emoção, numa noite em que o lanterninha não precisou trabalhar. O filme era mais forte do que tudo. No final eu estava pronto para uma crise de choro quando, bruscamente, assim que o filme acabou acenderam as luzes. Muita gente enxugava os olhos e eu flagrado por aquele lumiar artificial repentino, engoli as emoções como sonrizal sem água.

Na saída encontrei com um dos mais lúcidos (???), inteligentes e tresloucados cronistas do Rio, Carlinhos de Oliveira (assinava com pompa José Carlos de Oliveira, diariamente no JB) que vivia lutando contra o alcoolismo que o perseguia desde a encarnação anterior, diziam as péssimas línguas. Seria ele? Um cara que tinha pinta, roupa e alma de Zona Sul, ali na Tijuca? Dia de semana? Cedo da noite? Vi que era porque, como um tiro de fuzil, ele andou reto, reto, reto até um bar onde pediu dois martelos (doses de cachaça).

Fui atrás e quando cheguei no balcão do botequim disse “trabalho na Radio JB, que também fica no sexto andar”. Pedi uma meia Malzbier para me enturmar, apesar de não gostar de bebida nenhuma (acabei golfando no banheiro). Carlinhos tinha a tecla “Gonzaguinha” e era só apertar para ele se tornar rancoroso, azedo, amargo, negativista, como o próprio cantor rancor. Ele fez uma cara de contrariado, mas a minha ideia não era tietar e nem fazer social.
Eu só queria saber o que ele tinha ido fazer na Tijuca já que mulher não era motivo pois o mantra cantado no Jangadeiro, power point das cabeças bebantes dizia que Carlinhos não come ninguém porque mulher não gosta de homem mal humorado.

Como acho que todo sado também é maso decidi das uns coices ao léu e Carlinhos começou a dar assunto. Já bêbado (com um martelo apenas; com o tempo baixam as doses sobem os porres e, segundo Jaguar, “é quando já estamos surfando no juízo final”) disse que estava tentando escrever sobre um cara que ia assistir a todas as sessões de “Em Algum Lugar do Passado”, em todos os cinemas possíveis, para afogar uma dor de corno. Naquela semana o sujeito estava se metendo no Comodoro, mas ele, Carlinhos, não conseguia localizar para conversar e fazê-lo personagem de uma crônica. Aquela noite seria a última tentativa porque “eu tenho mais o que não fazer”, esbravejou o ébrio cronista. Até perguntei “se eu achar o cara, quer que te avise?”. Delicado, Carlinhos rosnou “não”. Pensei “ah é, meu chapa, quer entubar um robalo? Pois sou repórter você, não...”.

Comecei a caçar o cara e a gostar da história do homem que ia afogar dor de corno com overdose de cinema, apesar de, no íntimo, acreditar (hoje mais ainda) que música, cinema, livros e praia curam qualquer doença. No dia seguinte, mais cedo, fui ao Comodoro, conversei com o pessoal procurando saber se havia um sujeito que ia a quase todas as sessões de “Em Algum Lugar do Passado”, etc etc etc. O porteiro ficou de ver mas o lanterninha, que passava por perto, ouviu e sussurrou no canto do meu ouvido: “a informação tem recompensa? O cara fez merda? É coisa com a polícia?”. Eu disse que não, que era curiosidade minha, mostrei a carteira de jornalista mas garanti dois mistos quentes e bebida “a seu critério”. O lanterninha disse que já havia notado "um cara estranho" e que me ligaria assim que ele voltasse ao cinema.

Dois dias depois, a secretária da redação da Rádio JB chamou alto “Luiz Antonio, linha A. É o lanterninha do cinema Comodoro”. Atendi, ele disse que o cara tinha acabado de entrar no cinema e que o filme sairia de cartaz em pouco tempo. Eu tinha um programa jornalístico na Rádio JB chamado “Vida no Rio” só entrevistando pessoas bizarras vivendo situações surreais, numa cidade cada vez mais boçal etc. Logo, minha pauta era livre. Peguei um gravador, saí. Táxi e cinema Comodoro. 

Cheguei, filme já começado, o lanterninha apontou “é aquele lá na frente, bem no meio do cinema”. Cinema vazio, quatro e pouco da tarde. Sentei perto e fiquei observando. O sujeito mantinha as mãos no queixo, de vez em quando pegava um lenço no bolso da camisa, enxugava os olhos e voltava com as mãos no queixo. Faltavam uns 20 minutos para o filme terminar ele olhou para os lados e começou a sacolejar na cadeira, bronha provavelmente e logo depois ficou quieto, relaxado na cadeira. Não se mexeu mais.

O filme acabou, mas ele não levantou. Nem eu. O lanterninha se aproximou e no meu ouvido comentou “agora ele vai ficar assim, meio dormindo até começar a outra sessão. Se eu for lá ele vai implorar para deixar assistir mais uma. Vai assim até a última sessão. Aí, na última sessão, eu tento acordar, digo que o filme acabou, ele levanta e sai chorando”.

Voltei na última sessão, dei a grana do lanche para o lanterninha e na saída cerquei o suposto voyeur, prevendo uma explosão e até agressão física. Quando eu disse “sou jornalista da radio tal e queria conversar contigo...”, ele me olhou, olhos inchados e disse “ainda bem”. Não entendi, mas fui para aquele botequim do Carlinhos onde sentamos numa mesinha de madeira velha com toalha quadriculada de plástico.

Professor do ensino médio, bom em literatura, boa fala, ele concordou em contar desde que eu me comprometesse a publicar o nome dele e da mulher que “me atirou no precipício”. Topei e disse que o texto sairia no Pasquim mas sem complicar perguntei logo: “por que você assiste “Em Algum Lugar do Passado” todos os dias, todas as horas?”. Ele respondeu claramente: “porque eu preciso me convencer que um amor quando acaba não tem volta. Esse filme é certeiro. O personagem perde a personagem porque ela não existe, logo o amor também não. Mas com medo de que no final os dois acabassem reatando, eu nunca assisto até o fim...eu me masturbo antes do fim e durmo...aí vem o lanterninha e diz “o filme acabou”. Eu finjo que não entendo e ele repete “o filme acabou”. Peço para repetir, de novo “o filme acabou”. Eu saio dali martelando “o filme acabou”, “o filme acabou”, “o filme acabou”, eu me convenço. Fico mais aliviado, não dou nenhum espaço para a maldita esperança porque o meu filme com aquela mulher acabou mesmo, mas a esperança insiste em rebobinar.

Perguntei se aquele ritual estava fazendo efeito, ele disse “com certeza, agora a esperança só volta dois dias depois. Antes logo que saia a esperança me torturava com aquela conversa “tudo vai dar certo, tudo será como antes” e tome sofrimento, tristeza. A tendência é que, de “filme acabou” em “filme acabou”, minha doença desapareça. Conversamos um bom tempo.

Agradeci. Ele perguntou se eu iria publicar eu disse que a chefia ia dar uma avaliada. Mas naquele momento decidi não escrever nada para não reativar a esperança, logo, a doença daquele homem, que já estava quase curado. Jamais comentei o assunto com Carlinhos de Oliveira que, acho, ficou sem saber até a sua morte em 1986. 

Quando o seu filme acabou.






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