Hóspede II



Falta de ar pelo amor partido, sem bilhete, 29 anos atrás. Leve asfixia, leve melancolia, leve arrependimento sob a garoa fina e quase fria. Ele mandara o amor partir. Partir reto, sem olhar para trás, sem derramar lágrima, sem se deixar levar pelas nuvens obscuras da falsa esperança. Cretina.

Chega ao topo da serra bela e fria, quase no final da estreita estrada, a subida contornada por cerca viva que se transformava em um diário, onde letras, vírgulas, parágrafos pareciam incorporar os fios de metal entre os moirões. Piso de pedras. No final da subida um pátio, não muito grande, com antigas, muito antigas, marcas de pneus. Bem em frente, uma pequena casa de hóspede, em madeira e telha colonial.

O motor V8 silencioso do carro corta o silêncio opaco daquele lugar que já fora mágico, 29 anos atrás. Havia ecos, de vozes relembradas, remexidas, requentadas. Havia ecos de longos e apaixonados beijos entre os pinheiros que naquela manhã sem vento pareciam estafados, parados, quietos. Como ele.
Escadaria rústica bem à frente. Canil, horta, um pequeno curral, lembrança da canção do vento. A escadaria próxima ao pico do morro onde havia vida. Gado, cães, galos, noites, quintais. Havia vida, galochas, lama, tombos, gargalhadas, amor. Quatro letras que não choram, ele costumava dizer, 29 anos atrás.

Na descida, mais árvores, vento, curral, horta, canil, pátio, som do motor V8 se confunde com o som ensurdecedor do silêncio. A esquerda, a casa. Grande, gentil, hospitaleira. A porta, a copa, a cozinha. Vazias. Nas paredes, manchas de armários que há tempos eram abertos e fechados frenética e alegremente.  Depois da cozinha um pequeno banheiro e a sala de estar. Vazios.

Ecos do leve falatório. Que dia lindo; também acho; vou comprar os jornais; vai chover forte hoje, que bom; eu te amo; também te amo; para sempre; claro; bom dia, senhora; bom dia, senhor; bom dia, bom rapaz.

Colada a sala de estar o salão de jantar. Colonial como toda a casa. Também vazio. Mais ecos, muitos. Vozes, risos, planos, angústias, camaradagem, afeto, um choro de criança, o trote do cavalo manso, a brisa do amor perfeito, os sonhos, as memórias, as reflexões. O motor V8 em marcha lenta empurra o carro devagar em direção ao passado que o homem clama se fazer presente, mesmo que não existam ampulhetas invertidas nessa vida. Tosca, linda. Vida.
Janelões. Vista da mata, cheiro de eucalipto, chuva em terra molhada, alguma neblina, estrelas radiantes, luar, o som incessante do riacho que lembrava uma clave de sol.

Andar de cima. Mais quartos. Vazios. Sossego, canto da cigarra no fim de tarde. Brisa fria, fome, sono, sonhos, mais sonhos. O que será de mim?, pergunta o homem com o carro parado, motor V8 em marcha lenta, obediente.
Deixa o carro, porta aberta, sobe e desce os degraus, as duas salas desertas, a copa, a cozinha, o pátio, as antigas marcas de pneus. A subida se faz descida, contornada de cerca viva, que leva ao quase final da estreita estrada.

Entra no carro, manobra, desce o caminho. Asfalto. O motor V8 ruge, o carro parte em alta velocidade. Alívio, angústia, terror, êxtase, o pé mais fundo no acelerador na grande reta, 230, 270 quilômetros por hora como se quisesse acelerar as partículas e voltar no tempo.

Tempo, aliado que faz esquecer, vilão que despeja lembranças. Tempo, vida, saudade do ferro velho existencial deixado lá, 29 anos atrás, fingindo que nada aconteceu. Mas tudo aconteceu. Só ele não percebeu.

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