Walter
Não acredito que o carnaval (prefiro com c minúsculo) seja um
estado de espírito. Se fosse, o Estado do Rio passaria a chamada “folia de
Momo” comendo naftalina debaixo da cama já que estamos numa guerra civil
descontrolada. Com que estado de espírito ir para a rua fantasiado para
mergulhar na alegria, mesmo a copulsória?
O carnaval é uma decisão. Claro que há os que não gostam, os
que tem ojeriza, horror, mas por mais que as ruas estejam sitiadas romper o
medo, a fobia, a estagnação é mais do que necessário.
O bom dos blocos é que, em geral, as pessoas vão quase
“blindadas” com amigos, colegas, conhecidos, praticando a melhor das terapias
(chamo de “ruaterapia”) que é peitar (sem confrontar) a lógica do medo e viver
o tempo que resta para cada um com o mínimo de prazer.
Por mais que haja bombas, terrorismo, caos, as crianças do
Afeganistão continuam soltando pipas (cafifa em Niterói, papagaio em São
Paulo), as feiras continuam funcionando, a cantoria nas noites de Cabul estão
lá, enfim, por mais que a situação esteja dramática, afegãos (como os
paquistaneses e vietnamitas) acham que a vida só vale a pena se pudermos
vive-la. Mesmo que correndo risco.
Está aí a magia do carnaval. Há luto por toda a parte no
Estado, há covardia, há violência, há brutalidade, mas o carnaval consegue
atrair as pessoas para a vida, mesmo que passando por perigosas pinguelas.
Numa redação no início de minha trajetória profissional,
conheci um grande redator chamado Walter. Mais velho, escrevia muito bem e com
ele exercitei muito a prática do lead e sublead (ou lide e sublide), já que ele
exigia a presença dos dois em cada texto.
Walter chegava caladão, dava um olá para todo mundo e enfiava
a cara na máquina de escrever, parando de vez em quando para tomar comprimidos.
Walter era hipocondríaco e, diziam debochando, usava máscara hospitalar no
ônibus e no trem da Central que o levava para casa.
O pessoal ia almoçar numa pensão barata na Gamboa, mas
temendo bactérias, germes, moscas, etc Walter não ia. Levava comida de casa
numa pequena marmita que esquentava num velho fogão que ficava num canto da
redação. Seu pavor de doenças o transformou num homem insular, que não ia a
lugar nenhum, só trabalho-casa-trabalho. Uma vez por mês ia a Paquetá onde
tinha uns primos. Nada mais.
Como a vida é mais imprevisível do que meteorologia, numa
noite de quarta feira Walter caminhava para pegar o ônibus (ele ia mais tarde
para evitar aglomerações e ônibus lotado, muito risco de contágio) e parte de
uma marquise desabou. Sobre ele.
Deu sorte porque um pedaço relativamente pequeno que atingiu
o seu lado direito. Mesmo assim foi levado quase desmaiado para o Souza Aguiar
e rápido a notícia chegou a redação.
Transferido para um hospital particular no Rio Comprido,
Walter passou mais de 15 dias em cima de um leito. Quando fui visita-lo deu
vontade de falar “tá vendo? Todo cheio de cagaços e acabou que a mulher da
foice quase te levou”, mas não tinha nenhuma intimidade para isso. Mas soube
que colegas mais próximos comentaram algo parecido com o Walter que, quando
saiu do hospital, tomou uma decisão radical: se demitiu e foi viver trancado em
casa, em Vaz Lobo, onde ficou até morrer.
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