Caminhe pelas ruas - artigo extraído do site Vida Simples & Pedal Sonoro
Texto de Tony
Nyenhuis e Wans Spiess*; foto de Guilherme Stecanella
Andar por aí, seguindo o calçamento, pode ser uma
maneira de se sentir mais próximo da cidade, das pessoas e da gente mesmo
Eu ando, tu andas, nós andamos. O verbo andar é um dos mais
belos da nossa língua. Primeiro vem amor, depois vem andar. Necessariamente
nessa ordem. Melhor ainda quando caminham juntos. Certamente me apaixonei pela
palavra andando pela cidade. Um gesto de afeto na esquina, uma música que
lembra a infância, os cheiros de comida que escapam pelas janelas, flores,
chuva, pipoca, cachorro, gato e passarinho. Imagina se de carro, vidro fechado,
ar-condicionado, voz de Waze, se chega tão longe na cidade — e com a gente
mesmo…
Andar é uma das primeiras coisas que aprendemos na vida.
Depois das primeiras palavras nos ensinam os passos. Daí caímos, levantamos,
caímos, levantamos, e seguimos tateando os caminhos. É uma pena que, quando se
tem domínio da técnica, o andar fique tão automático que crescemos perdendo a
percepção da beleza desse movimento tão nosso. A boa notícia: sempre é tempo de
se reconectar com ele. Foi só quando entrei na faculdade que me reconectei com
o movimento do pé ante pé. Na região central da capital paulista, andar pelas
calçadas tornou-se não só necessário como também prazeroso.
Lembro-me como se fosse hoje do cheiro do churrasco grego no
caminho do metrô à faculdade. Ainda era cedo e os pedaços de carne amontoados
já rodavam em grandes máquinas metálicas. Ao redor da iguaria reunia-se gente
em busca de um emprego (ou de esperança), motoboys, aposentados, boêmios,
homens-placa e outras figuras típicas do centro de São Paulo. Sem falar dos
diferentes estilos arquitetônicos que também insistem em coexistir. Fui
aprendendo a identificar o neogótico da Catedral da Sé, o eclético do Teatro
Municipal, o colonial português do Pátio do Colégio e toda a história da
formação da cidade.
Numa época em que o mundo virtual dava seus primeiros passos
— veja bem, estamos falando do início dos anos 90 —, eu dava passadas largas
pelo meu “Google Street View” da vida real. Mas o que aprendi mesmo vai muito
além dos sentidos. Ao caminharmos pelas calçadas de São Paulo, cruzamos com
gente de origem árabe, chinesa, africana… e nem nos damos conta disso, porque,
naquele espaço, os passos e até a pressa são bem iguais. É o privilégio de
viver em uma das capitais étnica e culturalmente mais diversas do mundo.
Caminhar ensina a verdadeira democracia: que a cidade é lugar de acolhimento, não importando raça, crença ou a sua posição na pirâmide social.
Caminhar ensina a verdadeira democracia: que a cidade é lugar de acolhimento, não importando raça, crença ou a sua posição na pirâmide social.
Um convite
Estou contando tudo isso para lhe fazer um convite e propor um experimento.
Ande! É bem fácil dar o primeiro passo. A esquecida calçada leva a descobertas
e sensações inacreditáveis. Quer saber como? Se existisse um guia para essa
experiência o capítulo de número um seria, claro, botar o pé fora de casa com a
mente bem aberta (e sem os fones de ouvido). Tire uma foto, com o celular
mesmo, de um detalhe em que você nunca reparou, pelo excesso de pressa ou pela
falta de atenção, na calçada da sua rua. Um desenho caprichado, uma forma
surpreendente do piso, um colorido inesperado.
Na capital paulista, por exemplo, a calçada com o desenho do
mapa do Estado é um símbolo da cidade. É obra de gente como a gente, da Mirthes
Bernardes, uma funcionária pública que ganhou um concurso nos anos 60 para
escolher o padrão do piso de São Paulo. O desenho simples e criativo dela está
espalhado por vários lugares, no centro e nos bairros. Já na Liberdade, região
de colonização japonesa, quem acompanha nossos passos é o poderoso Deus do
Trovão (Kaminari). Seu símbolo, “mitsu-domoe” (uma lindeza), estampa lajota
sim, lajota não as calçadas do lugar. E tem o passeio em frente à tradicional
Biblioteca Mário de Andrade, entre as ruas Consolação e São Luiz.
Seu tracejado em ponto cruz forma um mosaico de 1000 metros
quadrados e tem a palavra “Biblioteca” escrita em nada menos do que 12 idiomas,
entre eles russo, coreano e hebraico. Ali, dá até para brincar de
caça-palavras, mesmo sem ser criança. Muitos grafismos são assim, pensados como
obras de arte. Outras imagens são formadas aleatoriamente por folhas e flores
que caem no chão, pelo grafite que escapa dos muros, pelo amassado do papel de
bala, das bitucas de cigarro e da fruta pisada. Basta um olhar generoso e
apreciativo para a calçada que você pisa e a mágica surge bem na frente dos
seus pés. Prometo que você vai se surpreender.
Calçada é palco
A
verdade é que a calçada, dependendo do seu olhar, pode ser generosa como um
palco em dia de espetáculo. Preste atenção no balé das suas pernas e pés na
cidade. Siga caminhando, detenha-se nos pés te levando a passear. Aprecie a
dança: uma perna levanta, o pé da outra perna toca o chão. Como todo palco
espera abrigar uma boa história, vale todo tipo de enredo. Pensar como era o
bairro há 30 ou 40 anos. Cem anos. Duzentos mil anos, 1 milhão de anos.
Outro
dia cheguei a ver até dinossauros no bairro do Paraíso, região central de São
Paulo. Escute o som das suas passadas. E se pudesse ver a imagem, como num
filme, de quantas vezes passou por ali e em quantas situações diferentes? Indo
comprar pão de chinelos, em um primeiro dia de trabalho, de mãos dadas com alguém
especial, as costumeiras voltinhas com o cachorro inesquecível que se foi,
esperando a chegada de um filho, fazendo planos das férias, sonhando acordado
ou escondendo as lágrimas para que ninguém perceba a tristeza que brota por
entre os olhos. Trajetos de afetos nos afetam, suas memórias estão igualmente
marcadas no local de passagem. Acredite.
Siga caminhando. Entre em uma rua de feira, onde o asfalto
vira calçadão por algumas horas. Deixe-se levar pelo aroma das frutas e legumes
fresquinhos, pelos gritos em busca de atenção e de clientela, pelas cores
vibrantes e a organização meticulosa da mercadoria exposta nas banquinhas. O
feirante é um artista ou um guerreiro? Ouça como vendem seu peixe à freguesia,
ria das suas brincadeiras. Aceite amostras grátis de toda fruta que oferecerem:
mamão, melão, ameixa, fruta-do-conde, jaca. Você nem percebeu e tem uma salada
de frutas na sua barriga. A propósito, quanto já andou até agora? Se aceita um
conselho, use umas moedinhas e compre um pastel e um caldo de cana.
Continue andando, avance pela cidade. Ela é sua. Logo ali na
frente outra foto. A calçada de caquinhos vermelhos lembra a casa da minha avó.
Que saudades tenho dela, das comidas que fazia, dos causos que contava, do
jeito como me olhava, dos conselhos que dava. Quem mais deixava a gente brincar
na calçada desde que, claro, não nos afastássemos muito do portão? Quanta falta
a senhora me faz. Será que ainda vamos nos ver algum dia? A senhora tinha
certeza que sim, tenho as minhas dúvidas. Também faltou dizer tantas coisas ao
vovô, espero que estejam bem. Sei que estão.
Olha, preciso falar: nada de fones de ouvidos. Deixe a música
para outro dia, hoje não. Só se for música de artista de rua. Este, sim, sabe
fazer calçada de palco, e vice-versa. Pare para ouvir. Cante o refrão ou, se
não souber, apenas mexa a boca. Bata palmas no fim da apresentação, deixe uma
moedinha ou elogie. Faça os dois, de preferência. Siga andando. Mais uma foto,
agora de uma declaração de amor. Foi escrita em um cimento fresco de calçada.
“Vivi, te amo.” Nunca tinha reparado nessas declarações de amor, mais comuns do
que se imagina. Quem será que é Vivi, Viviane? E o autor ou a autora da
declaração na calçada? Será que estão juntos? Você, sem perceber, tirou a foto
de joelhos, para ficar bem de pertinho. Quem passa olha estranho, você abre um
leve sorriso e nem liga. O dar de ombros, saiba, é um sinal espetacular. De
quem já entendeu os vários caminhos do andar. Palmas! Fecham-se as cortinas.
Pedras no caminho?
Claro que, assim como na vida, nem tudo é incrível o tempo todo. Quando se fala
em calçada, então, virou até lugar-comum falar mal delas. Em quase todas as
cidades brasileiras desenrolam-se problemas: calçadas quebradas, abandonadas,
sujas, esburacadas, cheias de desníveis, com pouca ou nenhuma acessibilidade
para cadeirantes, cegos, idosos ou mães com carrinhos de bebê.
Talvez a cultura
do culto ao automóvel tenha nos levado a uma legislação estranha: o responsável
pela calçada é o dono do imóvel em que ela se localiza. Com a falta de padrão,
cada um constrói como pode ou quer; e a falta de fiscalização das prefeituras
resulta em calçadas pouco convidativas e perigosas.
Some-se aos problemas
estruturais e culturais a incômoda e inaceitável questão da falta de segurança
pública. Mas podemos aprender com os obstáculos e perceber que o
principal requisito para termos cidades caminháveis e seguras é a ocupação
urbana, é tomarmos posse do que é nosso. Andar pode ser visto como um ato de
resistência. Um belo primeiro passo! Uma coisa é certa: antes de andar de
bicicleta, carro, ônibus ou metrô, somos todos pedestres. A mobilidade do
futuro é a “intermodal”. Nas cidades (onde viverá grande parte da população mundial)
é possível que o dia seja assim: sair de casa a pé, alugar uma bicicleta na
esquina até o metrô, seguir andando até o ponto do ônibus ou do trem, e
caminhar até o destino final. Vai inexistir espaço para veículos individuais, a
prática de uma pessoa se locomover presa a toneladas de lata. Se esse é o
futuro, segundo especialistas, melhor olhar hoje com atenção para a calçada, a
plataforma do caminhar. Vale pensar além, pois ocupar a cidade andando é criar
novas conexões com a localidade e as pessoas. Cidadania e humanidade na veia.
Uma experiência com a gente mesmo, que ultrapassa a visão de transporte ou de
mobilidade. Outro dia alguém na rua as- sinalou lindamente: “Temos que andar, a
vida é movimento”. O caminho é bem por aí.
* Criaram o projeto
CalçadaSP (@calcadasp), no qual instigam um olhar apreciativo para o
calçamento.
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