Mau humor
Durante uns anos fui freguês de um comedouro nas imediações.
Distraído, olhando e pensando em outras coisas, fingi que não sabia o quanto
era mal tratado naquele negócio. Gente mal humorada distribuindo coices pelas
baias de fregueses pacatos, cansados, arregados, entre eles eu. Para piorar, o
negócio aumentava o preço dos seus produtos à galega, de acordo com o (mau)
humor dos donos.
Há um ano entrei e dei boa tarde. Como de praxe,
uma funcionária com um bico de pica pau na boca não respondeu. Dei
boa tarde mais duas vezes e nada. Perguntei se a canja de galinha estava boa e
ela respondeu “tem que pagar as torradas avulso”. Rebati “avulsas, minha filha.
Avulsas!”.
Saí e fui para um outro curral, no mesmo comedouro.
Outra funcionária, tromba à mostra, bico de avestruz. Dei boa tarde,
nada. Boa tarde segunda vez, resposta: “vai querer o que?”. Saí
prometendo a mim mesmo não voltar mais, o que de fato
aconteceu. Muitas vezes demoro, o saco inflama, arde, pela, mas
quando torra adeus.
Minha alma levemente otária atura quase tudo da humanidade,
menos mau humor. Flagelo universal, o mau humor pode ter feito D. Pedro I
gritar “independência ou morte” na margem do Rio Ipiranga, mas hoje a história
revista mostra que é pura cascata. Acometido de violenta diarreia, o
imperador nada disse, nada gritou, mas fez a independência, sim. Era
mal humorado, detestava banho, fedia, e, dizem as lendas, pegava até
as éguas na Quinta da Boa Vista. Mas quando se sentia de tromba sumia
de circulação. Tinha consideração com os outros mortais.
Uma pessoa com mau humor não deveria sair de casa. Ou sair e
ficar quieta. Um amigo tem duas filhas, 20 e poucos anos, propensas ao mau
humor, que moram com a mãe, também mal humorada meio crônica. Ele já combinou
com as filhas que quando estivessem de bico, avisassem para ele não aparecer.
Um conhecido diz que o bico, ou bicão/bocão/tromba, é um
quadro comum entre os mal humorados. Ele me conta que “quando estou mal
humorado, chego em casa, pego o cachorro, ponho na coleira e saio para passear
infinitamente, noite adentro.” Aliás, se existe um ser perfeito neste planeta,
este ser é o cachorro. Fome, frio, doença, calor, calor, calor, nada tira o cão
de seu bom humor.
Passando em frente ao tal comedouro que abriu esse texto,
sinto alívio. Não voltei mais lá, optando por outros comedouros bem mais
civilizados, educados, respeitosos. Ninguém é obrigado a aturar mau humor, seja
pago, seja grátis, seja de que forma for. Por mais que, eventualmente, haja
pedregulhos em nossa trilha existencial, e isso gere frustração e mau humor,
ninguém tem nada com isso.
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