Papo de domingo: Jorge Dodge
Na minha adolescência o Brasil produzia os “monstros” com
motor V8, rápidos, desafiadores, irresponsáveis. Eu sonhava com o americano
Mustang (Ford) e também o com o seu arquirrival Camaro (Chevrolet). No Brasil
meu delírio maior era ter um Dodge Charter R/T, o que acabou acontecendo décadas
depois.
No início deste século 21, vinha de moto por uma avenida e na
frente de uma agência ele me chamou atenção. Era um Dodge Charger R/T bege com
capota marrom (semelhante ao da foto) com uma inscrição no parabrisa: “Carro de
colecionador”.
Detesto marrom, cor de caixão e cocô, mas aquilo ali era uma
exceção rara. Dei a volta no quarteirão, parei, desci da moto e fui ver o
Charger. Inteirinho, ano 1978, interior bege e marrom, motor LA 318 fabricado,
acho, no Canadá. Foi paixão explosiva e imediata, daquelas que nos tornam
precipitados e levemente imbecis. Por isso, me fiz de racional e disse ao
vendedor que voltaria no dia seguinte.
De manhã, estava lá. Fui com a minha namorada porque mantenho
o saudável hábito de sempre pedir a opinião da mulher em relação a tudo; mulher
tem a mais aguçada intuição entre todos os mamíferos.
O gerente da agência, Claudinho, pôs o carro na rua e fiz um
pequeno test drive com aquele trovão. De tanto ler, conhecia todos os detalhes,
prós e contras. Prós, o motor, acabamento do interior, design. Contra:
praticamente não tinha freio (eram freios a lona nas quatro rodas), bebia mais
do que vários gambás juntos (na cidade uns 4 km/litro) e a porta quando batia
podia decepar dúzias de dedos dos passageiros do banco de trás, caso apoiassem a mão na
moldura da janela.
Perguntei a namorada “e aí, gostou?”, ela concentrada
respondeu com um desanimado “é, né?”. E argumentou certeira e objetiva, adereços
que os sonhadores não conhecem. Perguntas básicas: “onde você vai parar esse
carro que tem cinco metros de comprimento? Será que é fácil achar peças? E
mecânicos? Não acha que está caro demais?”. Eu, mudo, ouvi e depois de uns
minutos dei razão e fomos embora.
Ela percebeu que eu não conseguia dormir. Parecia um limpador
de parabrisa na cama, levantando para beber água, fazer xixi, sabe como? Foi
quando ela atirou no cerne da questão: “não para de pensar no carro, né?”.
Confessei que não parava mesmo não, ela acendeu o abajur e me convenceu a
comprar o Dodge. “Você sempre falou desse carro, uma vez em São Paulo quase foi
atropelado atravessando uma rua para ver um...ah, se não der pé, vende”.
No dia seguinte, pou! Levei o Dodge, da agência direto para
uma oficina de canos silenciosos. Pus dois escapamentos esportivos, um em cada
saída de descarga e saí de lá parecendo o cometa Halley, com o corpo todo
arrepiado com o rosnado do motor, lembrando de Steve McQueen em “Bullitt”. O
vruuuuuuum daquele motor com o escapamento esportivo era maravilhoso, mas tinha
um problema: chamava a atenção. E eu não gosto de chamar a atenção.
Como era raridade, deixava o Charger na garagem (todo mundo
olhava) e só depois de meia noite saia para dar uma volta porque não tinha
trânsito, ruas livres. Em um desses passeios, numa avenida absolutamente
deserta, acelerei forte, o bicho urrou, decolou e no final da reta freei mas
não tinha freio. Quente demais. Reduzi de quarta para a segunda e primeira
marchas tentando controlar aquele animal quando (ufa!) consegui parar. Milagre,
tenho certeza, pois um muro me esperava.
No dia seguinte, banho de óleo na garagem. Levei num mecânico
de motor V8 que me indicaram, ele pôs o Charger no elevador, olhou e deu o
veredicto: estouraram seis buchas. Perguntei “buchas”? Ele me levou até debaixo
do carro e eram pequenos artefatos de borracha tampando componentes na parte
debaixo do motor. Perguntei se ele tinha para vender e, na sinceridade,
proferiu “só o Jorge Dodge”. Fica onde?, indaguei. “Na favela da Maré. Compra
as buchas e traz para mim que ponho. São baratas, aproveita e compra as 13 logo
porque vivem estourando. Mas vá com esse carro para o pessoal saber que você
vai no Jorge Dodge, entendeu?”. Entendi.
Trabalhei até umas 9 da noite, depois fui para a casa da
namorada falando como quem não quer nada “amanhã de manhã vou dar um pulinho na
Maré”. Ela deu outro tiro certeiro: “o carro, né?”. Respondi “É, coisa à toa,
mas só vende lá”.
De manhã rolou um princípio de incêndio entre nós. Ela queria
ir comigo de qualquer maneira e eu, paternal, argumentava “não precisa, não
precisa...”, mas ela foi e gostei. Além
do mais ela craque em mapas. Sim, usamos um mapa da Quatro Rodas para achar o
lugar.
Entrei na Maré numa boa, bem devagar, muito devagar,
perguntando onde era o “Jorge Dodge" e as pessoas informavam. Quinze
minutos depois, cheguei. Escrito a mão na quase fachada estava lá “Jorge Dodge
bar, prato feito, peças de carros e fiado só no vizinho” (a pontuação é minha).
Me apresentei, ele muito gente boa elogiou “que caranga, hein
meu chapa”, apresentei a namorada, ele cumprimentou “prazer, madame” e falei
das buchas. Ele disse “isso é assim mesmo, senta aí no bar que vou lá buscar”.
Sentamos. Uma Kombi parou com dois ou três caixotes, um senhor bem bêbado
sentado num banquinho de madeira comentou sarcástico “esses são os fornecedores
de peças de carro...hahaha...só porque sou velho e bêbado acham que sou
babaca.” Abelhudo mandei um “por que?”, e o bluesman (parecia mesmo) “ora, meu
filho, é tudo roubado.” Minha namorada riu, mas não foi de nervoso. Depois me
disse que riu da cara que fiz.
Jorge Dodge fez uma promoção boa, 26 buchas, hoje cada uma
custaria 5 reais, ele fez por 3. Levei. Entramos no carro e fiz um verdadeiro
rali para sair do lugar. Queria entregar ao mecânico e fazer logo o serviço
porque levava latas de óleo na mala do carro. Motor vazando, tinha que
completar o óleo toda hora.
Deixamos na oficina e saímos. Fomos trabalhar. No dia
seguinte carro OK, mão de obra uma facada, mas fazer o que? Dois dias depois,
sábado, íamos a um aniversário em Botafogo com amigos. “Que tal irmos de
Dodge?”, a namorada respondeu que tudo bem. Fomos.
De fato, o carro parecia uma caravela andando pelas ruas e
teve a delicadeza de ferver o motor no Túnel Santa Bárbara. Barulho
ensurdecedor dos carros passando, um outro motorista chamou o reboque,
confusão, a namorada se recusou a ir no carro dos amigos queria ficar e ficou.
O reboque deixou naquele recuo na boca do túnel em
Laranjeiras e eu fiquei de voltar segunda-feira para buscar. “Tem que ser hoje,
não pode dormir carro aqui.”, disse o funcionário. Depois do aniversário,
voltamos para lá, chamei um reboque particular (carro dessa idade não tem
seguro), morri numa grana e deixei nas imediações da oficina de V-8. Ninguém
rouba.
Segunda-feira fui lá. Empurraram o carro até a porta da
oficina. “Estourou uma mangueira do radiador”, disse o dono, “e pelo visto o
burrinho de freio também”. Pedi para trocar a mangueira (ufa!, ele tinha uma
lá) e quando ficou pronto levei o carro para a garagem e abandonei. Desilusão,
decepção, dor de corno.
Dois meses depois anunciei, pedindo um pouco mais do que
paguei por ele para compensar as despesas. Um cara de São Paulo ligou e
fechamos o negócio, sem choro. Dois dias depois, conforme o combinado, ele
apareceu num Alfa Romeo 156 seguida de um caminhão reboque. Comentei “coisa
linda o seu carro” e ele respondeu “mas é uma bosta”, e riu.
Ele era colecionador e perguntou logo “quantas buchas do
motor trocou?”, e riu; “ferveu muito?” riu de novo. “Vou comprar porque
relíquia não pode andar muito, entende? Tem que ficar quieto na garagem, sair
para ir a um encontro de colecionadores, leilão, alugar para novela, cinema,
tudo perto. É um ancião, entende? Vai para São Paulo de reboque porque não
aguenta, entende?”.
Quando vi o Dodge ir embora em cima do reboque senti...posso
falar?...senti um enorme alívio. Imediatamente liguei para a namorada, quase
gritei “vendi o Dodge!” e a noite fomos comemorar.
Comentários
Postar um comentário
Opinião não é palavrão. A sua é fundamental para este blog.
A Comunicação é uma via de mão dupla.