Desamor à cultura, por Ascânio Seleme – O Globo
Não há na História da humanidade uma civilização que tenha se
destacado no tempo, restado na lembrança dos seus povos e nos livros de
História como paradigma, sem ter aliado à sua jornada política uma produção
cultural exuberante. Foi assim na Grécia. Foi assim no Egito e em Roma. No
Império Britânico, na Rússia imperial dos Romanov e na China da dinastia Ming.
Os regimes que sufocaram a cultura acabaram desaparecendo da memória afetiva da
coletividade. É esse o destino que acabam encontrando todos os governos que
enxergam na cultura uma adversária a ser derrotada.
Governos têm entre suas atribuições formais o fomento à
cultura. Evidentemente o Estado não precisa produzir minério ou petróleo, nem
fabricar parafusos ou pregos. Tampouco cabe ao Estado gerir teatros, casas de
show ou cinemas. Mas é da sua competência incentivar as manifestações culturais
do seu povo. Estados pobres não dão dinheiro ao autor e ao produtor de cultura,
mas os incentivam por meio da redução de impostos. Governos pobres e engajados
direcionam seus incentivos para os companheiros ideológicos. Governos pobres,
engajados e burros não dão dinheiro, não incentivam e ainda atrapalham a
produção cultural.
Esse parece ser o caso do governo Bolsonaro. O governo que
torpedeou a Lei Rouanet, desidratou os cofres de estatais, como a Petrobras,
que já foi a maior fomentadora cultural do país, e fez na área as nomeações do
que havia de pior. A política de terra arrasada virou sua marca registrada.
Ninguém se salva no agrupamento formado para gerir a cultura nacional. São
tipos parecidos com personagens de história de terror ou de piadas
preconceituosas, na melhor das hipóteses.
Eleito numa avalanche parecida com a que levou Fernando
Collor para o Palácio do Planalto em 1989, Jair Bolsonaro também se assemelha
politicamente com o antecessor. Collor odiava os artistas porque a maioria
apoiou Lula na eleição. Parece ocorrer o mesmo agora. O presidente olha para os
artistas e, míope, só vê inimigos. Ato contínuo, passa a agredi-los em todas as
linhas. Sua artilharia anticultural é tão pesada quanto aleatória. Basta alguém
ter uma ideia que cause dano ou ofenda a produção cultural para que seja
adotada.
Foi assim com a Medida Provisória do Turismo ou com o fugaz
projeto de banimento de cantores, músicos, produtores culturais, DJs,
professores de artes e humoristas do programa de
Microempreendedor Individual
(MEI). O projeto era tão absurdo quanto estúpido. Absurdo, porque jogaria na
informalidade um contingente enorme de pessoas. Burro, porque impediria essa
turma de recolher imposto de renda e contribuir para o INSS. O projeto foi
retirado porque o presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, prometeu
derrubá-lo no plenário imediatamente após sua apresentação.
A MP do Turismo, no entanto, está em vigor apesar de toda a
gritaria contra. A medida isenta hotéis, spas e navios de cruzeiro do
recolhimento de direitos autorais de músicas tocadas em seus aposentos. Alega
que quartos de hotéis e similares são ambientes privados, contrariando o
Superior Tribunal de Justiça (STJ) que os considera como locais públicos de uso
privado. O fato é que os autores musicais estão impedidos de receber pela
execução de suas obras em hotéis e similares enquanto vigorar a MP. Segundo o
ECAD, são R$ 110 milhões a menos por ano nas contas de mais de 380 mil artistas
que recebem direitos autorais no Brasil.
Por que medidas como essas são editadas? Por que pessoas como
Roberto Alvim e Dante Mantovani são nomeadas para cargos-chaves da gestão
cultural? Certamente não se deve ao amor pelas artes.
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