Grades invisíveis


               Alerta ao leitor: há possibilidade desse artigo estar chato pra cacete.

“O Homem e seus Símbolos” (1875-1961), clássico do psicanalista Carl Gustav Jung, que aborda em profundidade a questão dos arquétipos, delírios, possibilidades, barreiras existenciais, o poder esclarecedor dos sonhos. Um movimento capaz de destruir as grades invisíveis.

É um livro difícil, prolixo, eventualmente chato. Os editores tentam explicar:  

“Inspirado por um sonho do autor e concluído apenas 10 dias antes de sua morte, o livro é uma tentativa de expor os princípios fundamentais da análise junguiana para o leitor, sem qualquer obrigatoriedade de conhecimento especializado de psicologia. No livro, Jung afirma que o homem só se realiza através do conhecimento e aceitação do seu inconsciente - conhecimento que ele adquire por intermédio dos sonhos e seus símbolos.”

Jung rompeu com seu mentor, Freud, que via no sexo a causa (direta ou indireta) de todas as neuroses, sem exceções. Jung discordava, tinha uma visão mais onírica, digamos. Leigo que sou, desde a adolescência usuário de psicanálise de várias escolas, sempre achei que neste quesito Freud tinha razão. O sexo é a essência da vida. Ponto. Dele depende, inclusive, a sobrevivência do amor. Ponto. A sobrevivência da espécie. Ponto. Freud não é sexista, tarado obsessivo. É a lógica (???) da existência.

O maior feirão de fantasias da história da civilização está a poucos centímetros de pelo menos quatro bilhões de pessoas que acessam a internet. Ofertas, propostas, convites, tentações. Por outro lado, o medo, os regulamentos, a castração e, em oposição, a obsessão de querer realizar o impossível, o utópico, o inatingível. As grades invisíveis.

Em 1970, David Crosby compôs uma canção chamada “Triad” sobre um menage a trois. Um cara e duas mulheres. Desde o quilometro zero da civilização, menage a trois é a fantasia de bilhões de pessoas, seja no formato homem/mulher/mulher, como na configuração mulher/homem/homem. Sempre existiu. Em especial na Roma antiga.

O erro é que, contrariando a sua natureza, tem gente que se atira em experiências heterodoxas e sabe-se lá como saem do outro lado. Em geral espatifados, moídos, detonados. Dois filmes do genial Luis Buñuel deixam essa questão do extremismo existencial (?) bem clara: “A Bela da Tarde”, de 1967, e “O Fantasma da Liberdade”, 1974.                                                  

As toneladas de liberdade oferecidas pelo computador a poucos centímetros podem reacender para alguns aquela equação levantada pela psicanálise tradicional: repressão=pervesão=psicopatia social. Pode reacender, ou não? Em muitos casos, afirma a psicanálise hortodoxa, as fantasias não realizadas (sexuais ou não) se transformam em patologias porque, até segunda desordem, nosso inconsciente detém o comando de boa parte de nossas ações ou das “não ações” e como, em tese, somos todos saudáveis, temos a “obrigação” de decidir o que queremos fazer e, sobretudo, o que não fazer. Viver fantasias? Qual o problema? Ser obrigado a realizá-las? Que problemão.

Fantasia é fantasia. Por que temê-la? Exemplo: paixão platônica, sentimento alimentado por “prováveis possibilidades” que concretamente não existem. Que mal há em acordar e dormir pensando numa pessoa que sequer conhecemos? Mal nenhum. Desde que saibamos tratar-se de uma fantasia.

Quando uma fantasia começa a se vestir de neurose é melhor abrir a porta e convidá-la a se retirar porque a partir daí entram os perversos personagens; padecimento, escárnio, loucura. Como a cabeça de Cinderela na hora em que a carruagem virou abóbora.

De acordo com a visão de junguianos heterodoxos (sim, existe essa classe) conviver com fantasias parece ser saudável desde que não se transforme em mania, obsessão, neura. Podemos ter fantasias consumistas, apartamento de 20 suítes de frente para o mar, um Aston Martin na garagem, tudo bem. O problema é abandonar a vida real trocando-a por um sonho que tem o aroma típico dos pesadelos. O pesadelo de se sentir na obrigação de concretizar fantasias impossíveis.

Quem se permite sonhar, divagar, especular, fantasiar provavelmente não terá confrontos com a sanidade. Os que forçam a barra e resolvem realizar coisas que estão muito acima de sua capacidade de digestão, estão fadados ao sofrimento, condenados a viver atrás das grades invisíveis. E os que ficam horrorizados com as suas fantasias, sejam de consumo, de viagem (passar férias na Síria, por exemplo, só para dar uma de exótico descolado), de relações afetivas/sexuais também vão se ver nus diante da loucura.

O fantasma da liberdade cavalga em todos nós. Seja num punk junkie, numa mulher burguesa que realiza a fantasia de se tornar prostituta de bordel depois do almoço (“A Bela da Tarde”), seja naqueles que acham que fantasias devem se tornar fatos “custem o que custar”.

Como se não custassem nada.

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