Arembepe, Bahia. Saudade, saudade, saudade...
Arembepe
conhece mais Gilberto Gil do que Caetano Veloso. Arembepe conhece
mais Caetano Veloso do que Gilberto Gil. Quando pisei o imenso areal
de Arembepe, sol de verão, senti que a constante brisa vinda do mar
contava histórias. Arembepe, litoral norte da Bahia, tem necessidade
compulsiva de falar pois foi naquele éden de coqueiros, piscinas
naturais, dunas, nuvens variadas passando em alta velocidade, como
nos filmes de Glauber Rocha e Oliver Stone, que a Tropicália se
afirmou no final dos anos 60. Arembepe foi o grande desbunde, o
desnude, o nosso Woodstock político, nossa Cuba musical.
Beijo
a areia quente de Arembepe. Faço reverências ao Senhor do Bonfim,
cuja igreja em Salvador havia visitado no dia anterior. Lá dentro,
ajoelhado por mais de 40 minutos, fiz dois únicos pedidos que foram
atendidos.
Enquanto
meditava, no silêncio quente daquela igreja, vi a imagem de Arembepe
desfilar em minha cabeça, como se o Senhor do Bonfim me convidasse
ou sugerisse. Olho para as cabanas hippies, de dois, três andares,
feitas de sapê. Arembepe foi tombada, ninguém mexe. Ando pela
areia, o sol carinhoso ardendo em meus ombros, a duna. A maior de
todas. Escpeculo,
quem sabe foi aqui que José Celso Martinez Correia declamou o Rei da
Vela pela primeira?
Quem sabe é essa duna o santuário sagrado de uma gente que um dia
acreditou num Brasil revolucionário? Ou ainda há quem discuta o
teor revolucionário de Gil, Caetano, Glauber e Zé Celso? Será?
Entro
nas cabanas, ocupadas por uma tribo de vagabundos inofensivos que
insistem em dar continuidade ao sonho hippie, fuzilado nos anos 70.
São cabeludos e guardam na parede um violão de Raul Seixas.
Batizaram de “Rancho Janis Joplin” a maior de todas as cabanas.
Mas minha cabeça está em 1969, no Brasil de 1969, quando Carlos
Lamarca, o capitão da guerrilha, largou a farda oficial e mergulhou
na clandestinidade para fazer a nossa revolução.
Não,
ao contrário dos
boatos, Lamarca não
passou alguns dias em Arembepe quando tentava escapar da repressão.
Ele rumou direto para o sertão da Bahia, enquanto sua companheira
Iara, cercada por batalhões do Exército e policiais do Dops,
comandados pelo delegado-facínora, o Doutor Tortura Sérgio Paranhos
Fleury, cercava o apartamento para onde fugiu, em Salvador. Iara se
matou. Tiro na têmpora direita. Arembepe conta tudo, com a suavidade
que as baianas em
quando contam uma longa e profunda história. Aliás, não conheço
histórias que não sejam longas e profundas na Bahia, e talvez por
isso eu ame visceralmente aquela terra.
Percorro
a aldeia hippie, fotografo tudo, todos os ângulos. Penso em Jorge
Mautner e João Ubaldo Ribeiro. Onde estaria João Ubaldo Ribeiro
quando Arembepe vivia o seu auge revolucionário? Provavelmente
fazendo a sua parte na revolução, lá em Itaparica,
pois João Ubaldo, por si só, já era
uma revolução, o mais brasileiro dos escritores brasileiros, o mais
baiano dos cariocas, o mais carioca dos baianos, um dos mais
corajosos e generosos
brasileiros que conheçi.
Olho
para a duna e ela me diz que pode ser que João Ubaldo tenha
participado dos happenings artísticos/políticos do final dos 60 em
Arembepe. Janis Joplin cantou do alto dessa duna em 1970, um de seus
últimos sinais de vida pois morreria meses depois. É mentira, mas
deixa a lenda “lendar”. O LSD rolava solto por entre os troncos e
coqueiros, mas alguém sempre lembrava o ideal revolucionário, que
era preciso libertar o Brasil. Ousar lutar, ousar vencer, escrevia
sempre Lamarca.
No
final dos 60, quem não ia para a luta armada desbundava e virava
hippie, ou se ajoelhava perante seus santuários pequeno-burgueses e
vivia o “Brasil, ame-o ou deixe-o”, engordando o vergonhoso
rebanho servil nacional, os tais 90 milhões em ação, dopados pelo
ópio dos gramados de
futebol.
O
mergulho no mar de Arembepe parece uma viagem alucinógena. Não vou
descrever o mar de Arembepe pois não quero divulgar muito aquele
lugar. Arembepe resistiu aos hippies, a repressão política, moral,
resistiu a especulação imobiliária, mas certamente não resistiria
ao turismo predatório e seus resorts, jet skis e cocaína.
O
violão de Raul Seixas está em destaque numa das cabanas, onde os
remanescentes hippies fazem artesanato. Por onde anda o Raul? Em qual
dessas nuvens ele estará? Por que não guardaram também os inúmeros
manifestos revolucionários que foram escritos em Arembepe? Porra,
ninguém se lembrou. Ou fazemos a revolução ou escrevemos sobre
ela. As duas coisas ao mesmo tempo não dá. Sento debaixo de um
coqueiro, de frente para o mar, tomado de comoção e História com H
maiúsculo.
Uma
mulher linda, morena de olhos verdes, completamente nua, me pede fogo
em italiano. Sua cona inchada, a 40 centímetros da minha boca, tem
um piercing sobre os pelos lisos e vastos. Acendo meu Zippo, que
acende o baseado dela. A italiana agradece secamente e volta ao mar,
para o seu rastaman, numa das milhares de piscinas verdes que os
recifes de Arembepe produzem. Glauber não descaralhou à toa com
Arembepe. Ele tinha razão. Mais razão ainda quando filmou algumas
imagens soltas em preto e branco. Em preto e branco Arembepe fica
mais nua pois a história da nossa revolução não era acrilírica e
muito menos multicolorida. Os anos eram de chumbo e a cor do chumbo é
a cor das tumbas.
Eventualmente
o astral de Arembepe pesa. Muita gente que falou, cantou e escreveu
ali foi caçado, torturado e morto pela ditadura. Ou enlouqueceu num
pau-de-arara, levando choque elétrico, sendo obrigado a confessar
histórias que na maioria das vezes não existiam. E me parece que
essas almas vagam em Arembepe, ainda tontas, ainda sem entender
porque ser brasileiro dava pena de morte no final dos 60.
E
a ditadura matava porque gostava de matar. Arembepe me conta que a
ditadura se transformou em serial killer por prazer, por gozo, por
covardia. E ninguém conseguiu matar Sérgio Fleury, símbolo-maior
da dor revolucionária e pendurar sua cabeça num coqueiro de
Arembepe, como um troféu em nome da grandeza humana.
A
densidade política de Arembepe não me permite pensar em outra coisa
a não ser no Brasil sonhado por Lamarca, por mim, por muita gente.
Se eu pudesse inserir uma trilha sonora nos meus devaneios em
Arembepe seriam duas músicas: “That´s Way” do Led Zeppelin e
“Voodoo Chile” de Jimi Hendrix. Não me perguntem por que. Eu
senti essas músicas pairando no ar e no mar de Arembepe o tempo
todo. E a imagem de Zé Celso Martinez Correia e de Caetano
esquelético, cabelo encaracolado, barbudo, de Gil também black
power, e de Janis, e de Raul, e de Mautner, e de Luiz Carlos Maciel,
meu Deus, tanta gente. Tanta gente sonhou com a revolução que
fracassou. Aquela nós perdemos e ponto final.
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