Mundo cão
Na boa, meu cotidiano não interessa a ninguém, mas
algumas vivências quase bizarras devem despertar, no mínimo, a curiosidade de
alguém. Mesmo porque, falando francamente, a minha biografia é tão inusitada
que já me convidaram para coloca-la em livro. Eu ri e jamais levei a sério.
Deve ter sido piada.
Sou jornalista há muito tempo, comecei com 16 anos em um
jornal popular e de cara quase desisti quando um de meus chefes me mandou fazer
uma reportagem tipicamente mundo cão. Puro sangue, desgraça, tragédia. Foi o
caso de uma mulher enciumada, pilhada por uma vizinha fofoqueira, na Baixada
Fluminense. A vizinha contou que o marido da mulher a estava traindo. Tomada pela
insanidade, a mulher entrou em casa e viu o marido dormindo na sala. Aproveitou,
pegou um facão e decepou o pênis do homem, tacou fogo e jogou no telhado. Um
gato comeu um pedaço do que restou. Me mandaram fazer a matéria no local.
Foi quando peguei um ônibus, a barca e voltei para casa. Fazer
obituário de trolha voadora definitivamente não estava em meus objetivos. Escrevi
uma carta para o chefe comunicando que havia jogado a toalha, que não era esse
tipo de jornalismo que queria, e por isso, voltei a estudar com a cabeça
voltada para a medicina. Pedi para a empregada lá de casa entregar a carta, já que ela sempre ia ao Centro do Rio depois do trabalho degustar um cara casado. Ela achava que ninguém sabia. Aliás, até hoje não sei se era o homem ou ela que era
casada. Quem sabe os dois. Ela pegou a barca e foi.
O que eu não esperava é que o tal chefe ligaria para a
minha casa querendo conversar. Na minha família ninguém sabia que eu estava
pulando a cerca, me enroscando com mídia, jornais, rádios e por isso dei sorte
de atender o telefone. O chefe começou meio que brincando, agradecendo pela “bela
portadora” que tinha levado a minha carta e disse que queria conversar. Fui lá
na redação e voltei a trabalhar, mas na editoria de cidade (confesso que as
vezes escrevia o horóscopo do jornal e gostava), mas, logicamente, sempre que
acontecia uma tragédia monumental todo mundo entrava na história. Cobri várias.
É barra pesada cobrir dramas como a tragédia das serras
aqui no Estado do Rio em 2011, quando 918 pessoas morreram por causa de uma chuva
implacável que arrasou Petrópolis, Teresópolis, Friburgo e outras localidades.
Cem pessoas desapareceram e 30 mil foram desalojadas. A cara dessas
calamidades, desses monstros é hedionda. Você fica andando entre
corpos, escombros, na esperança de poder dar uma boa notícia, mas nada (ou
pouco) acontece. O ambiente é de um silêncio estranho, uma espécie de mormaço
sonoro, eventual mente quebrado pelo barulho de uma pá ou picareta procurando
alguém E a situação só piora, só se agrava, os saques, os crimes paralelos, as
noites “dormidas” em cima de papelão e o desespero que transforma todos em
saqueadores, já que a fome de sobrevivência é maior e muito mais avassaladora
do que conceitos éticos.
O estranho é uma sensação que bate na gente de querer
estar lá, mesmo em condições sub-humanas, para exercer o jornalismo. Quando o
Japão sofreu aquele tisunami (a usina de Fukushima quase acabou com o Japão), o
colega Roberto Kovalick, da TV Globo, também passou o maior sufoco quando
resolveu chegar perto da usina interditada desrespeitando o bloqueio policial,
com a diferença de não estar cercado por milhares de esfomeados dispostos a,
literalmente, come-lo vivo em prol da sobrevivência.
Esse é o tipo de jornalismo é trágico, porém limpo,
necessário, útil. Nada a ver com o mundo cão. Esse tipo de jornalismo informa, segura a ganância de algumas autoridades que só pensam em garfar verbas, enfim, é
uma atividade bacana. No entanto, bandido detesta bons jornalistas, e também
polícia, militares, juízes, políticos, taxistas, acho que todo mundo detesta
bons jornalistas, aqueles que apuram, investigam, perguntam, insistem. Já os
amadores são tão inofensivos como pompom com protex.
No caso é o mundo que está cão e não a máquina de escrever,
o computador. O colega que chegou no local do pênis decepado contou que havia
polícia para conter os populares que queriam ver o corpo do homem e, claro, o
cadáver do bilau, mesmo carbonizado e quase todo comido pelo gato. Já foi
provado que esse comportamento é da essência torta da raça humana; morbidez,
atração por sangue, o modo vassoura de bruxa de ser. Quando ocorre uma
tragédia, é normal que a polícia vá, os bombeiros, a defesa civil e até os
jornalistas. Mas os à toas que só querem ver o morto para...para...para, sei
lá, é da tal essência, mas não entendo.
Já cobri dezenas de velórios e enterros e no de Carlos Lacerda (ex-político do Rio) estava com vários colegas entre eles um que entrou na capela do São João
Batista (Botafogo, Rio) e chegou junto ao caixão onde Lacerda estava sendo
velado. De repente, o colega levantou um lenço que estava no rosto do morto,
olhou para a cara dele e fechou de novo. Lá fora, assombrados, perguntamos por
que ele tinha feito aqui. “Não sei explicar, foi uma atração incontrolável”,
ele disse.
Entendeu?
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