23 de setembro de 2017
23
de setembro de 2017
O ônibus estava parado em São Domingos, bairro de
Niterói. Depois de dias e mais dias de ansiedade antecipatória eu ia assistir
The Who pela primeira vez na vida e, sinceramente, ainda não estava acreditando
que finalmente iria, em tese, dividir o mesmo espaço com Pete Townshend e Roger
Daltrey.
Minha ansiedade era de fã. Fã garoto, de 13 anos, que ouviu
The Who pela primeira vez e levou a letra de “I can see for miles” para a
professora de inglês, por favor, traduzir. Ela traduziu e quando li
imediatamente pensei que “esse cara escreve para mim”. Esse cara é Pete Townshend, líder do Who, compositor,
poeta, ensaísta, escritor, guitarrista, pianista, produtor que a partir daquela
tradução no papel almaço passou a ser o meu “biógrafo do inconsciente”. Meu e
de milhões em todo o mundo já que não conheço ninguém que decifre tão bem a
alma masculina como ele.
Meu otimismo (veja você) esperava que Roberto Medina
fosse me convidar para um lugar especial no show bem como, quem sabe, criar a
possibilidade de me aproximar de Pete Townshend por alguns segundos, tempo
suficiente para tirar uma foto a seu lado, e dizer apenas “Thank you, Pete”, externar
a minha gratidão por tudo o que ele disse e diz, em álbuns e canções que marcam
muitos momentos da minha existência. Só isso.
Meu otimismo achava que eu seria convidado porque em 1984
Medina me ligou, marcou uma reunião, e pediu para que nós da Rádio Fluminense
FM sugeríssemos nomes de bandas para participar do Rock in Rio I. E nós fizemos
enquetes no ar, pesquisas, e levamos uma lista para ele, por amor a música. Muita
gente não entendeu o fato de não ganharmos nada e da rádio sequer anúncios
pagos do festival. Tentávamos explicar, mas ninguém entendeu. The Who
encabeçava a lista, mas sabíamos que a banda estava parada na época.
O realismo alimentado por minha baixa estima (juro que luto
com ela todos os dias) diziam que Medina sequer lembrava da Radio Fluminense
FM, de 1984, e muito menos de mim. Não, não tenho mágoa alguma e agradeço a
ele por ter continuado com o festival e por ter tido a coragem de trazer The
Who, que no Brasil o labo b do labo b do lado b.
Fui ver The Who com meu irmão Fernando Cesar (muitos o
conhecem como Fernando, muitos como César) e meu irmão de alma André Valle, que
um mês antes havia assistido a banda em Denver, Colorado. Meu irmão também já tinha
visto quando morou em Paris, início dos anos 80. Deu uma ida a Londres, encontrou
nosso amigo comum Maurício Valladares e foram ao show num teatro pequeno.
Imagino que tenha sido no Young Vic Theatre com capacidade para 500 pessoas.
Depois do show ele pegou um daqueles orelhões que falavam de graça para o Brasil
e me ligou. Eu estava em Teresópolis, era carnaval, e do outro lado da linha,
voz rouca, meu irmão quase gritava, eufórico “acabei de ver The Who! Acabei de
ver The Who! Acabei de ver The Who!...estou surdo, alto pra cacete. Fiquei a três
metros de Pete...”.
A caminho do Rock in Rio, no ônibus, a ansiedade tinha
baixado, mas eu estava calado. Íamos ficar na plateia, na geral, milhares de
pessoas e com certeza não daria para ver a banda em close, mas com certeza iria
ouvir porque The Who sempre tocou alto demais, uma característica. Townshend sempre disse que o alto volume associado a microfonias e
feedbacks de som são “obras de arte contemporânea, atonais, abstratas, mensagens
invisíveis”. Hendrix pensava algo semelhante. Não foi a toa que algumas pessoas achavam que eu e meu irmão éramos
adolescentes anormais, provavelmente loucos, ouvindo microfonias em alto volume
no quarto, extraídas de “The Who Live at Leeds”, caramba que discaço.
Chegamos ao festival com horas de antecedência e ficamos
no meio do gramado. André, eu, meu irmão e a amiga Liliane Yusim, jornalista e locutora
da primeira fase Fluminense FM. A medida que o tempo passava, lógico, meu
coração batia mais acelerado, até que apagaram as luzes e, no palco, em led surgiram
os dizeres “Mantenha a calma, aí vem o The Who”. Segundos depois, explodiram os
primeiros acordes de “I can’t explain”.
Eu queria pular, gritar, falar frases desconexas, mas a
minha timidez não permitiu. De novo. Timidez que muitas vezes me atrapalha, mas
isso é outro assunto. Não viajei no tempo, não visitei o passado, The Who que
eu estava assistindo era o presente, o agora, os tais “minutos que não se
repetem”. Os caras tocando extremamente alto (fiquei com zumbido nos ouvidos
três dias, bela recordação) e muito bem.
A esquerda do palco, como sempre, Pete Townshend tocando
com muita força, Fenders Stratocaster coloridas. Ao lado de Bob Dylan, ele é um dos mais importantes pensadores do mundo contemporâneo, líder da vanguarda,
autor de “Tommy”, “Quadrophenia”, livros, filmes...
O show acabou mais de duas horas depois. Minha vontade de
ver os caras aumentou. Como um garoto, queria um autógrafo, a tal foto com o
Pete, mas ficou o eco da música reverberando, músicas que me orientam até hoje e, confesso,
uma espécie de sentimento de melancolia. Creio que havia despejado muita
adrenalina e depois serenei bruscamente.
O dia 23 de setembro de 2017 é uma bela tatuagem que
carrego no espírito, banho de energia, de afeto, a bordo de “ladies and
gentlemen...The Who!!!”.
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