O marinheiro punk da barca Rio-Niterói
Encontrei
um conhecido que é saudosista mas não é chato. Raridade. No
momento ele anda com muita saudade da barca Rio-Niterói de
antigamente, segundo ele mais romântica, varrida por uma brisa
marinha, alguns boêmios, a presença do profeta Gentileza, blá blá
blá blá. Eu estava num camelô contemplando relógios falsificados,
impressionado
com o alto nível
das “réplicas” atuais.
Não
comentei com ele para não prolongar a conversa, mas não tenho
saudade de quase nada, inclusive da barca Rio-Niterói dos anos 1970
(quando atravessava a Baía de Guanabara diariamente) que era suja,
quente, lenta. A travessia levava quase meia hora e elas pareciam
bonitinhas e “vintage” só para os turistas ou por quem não era
obrigado a usar.
No
entanto, duas vantagens inegáveis que os atuais catamarãs (que
atravessam rápido),
limpos e sem profetas (Gentileza era chato pra cacete) não tem:
belas e gostosas mulheres em profusão e uma varandinha que ficava na
popa onde namorávamos ao longo daquela meia hora, usando a bandeira
do Brasil que tremulava num pequeno mastro como toalha para higiene
íntima. Parei de andar nos
catamarãs quando soube, tempos atrás, que Adriana Ancelmo, miss
máfia, era advogada mor ($$$$$) da agência que fiscaliza as
embarcações na Baía de Guanabara. Nunca mais andei.
Em
algum lugar do passado, lanchões duas mil pessoas, havia
um marinheiro (a barca era do governo federal e o
governo federal funcionava
bem) na madrugada que era grosso, estúpido, amargo, mal humorado,
boçal, mas eficiente. A partir de meia noite quando o sono engolia
muitos passageiros (sem falar dos bêbados), o marinheiro punk batia
com o jornal nos encostos das cadeiras de madeira e gritava “a
barca chegou, cambada! Quem não levantar volta para o Rio”.
Um
amigo
garante que o marinheiro punk foi transferido para a madrugada depois
que, num dia de semana, por volta das três da tarde, os passageiros
sentiram que algo errado acontecia. Foi quando o nosso personagem foi
para a frente das fileiras de cadeiras do segundo andar e gritou “o
leme da barca quebrou, por isso ela está rodando”. Muita gente
passou mal e os passageiros tiveram que ser transferidos para outra
embarcação em pleno mar.
Alguém
denunciou o marinheiro como “fomentador de pânico” e ele foi
para a madrugada, barca de passageiros, digamos, profissionais. Ali,
o marinheiro podia gritar até que estava afundando e ninguém se
importaria.
Um
conhecido que adorava andar a pé pelo Rio (por isso ganhou o apelido
de Gandhi) voltava de um forró no Méier as 2 e meia da madrugada,
de sexta para sábado. Eu retornava da semifinal do concurso Miss
Shortinho, no Cassino Bangu.
As barcas funcionavam 24 horas. Hoje param de circular as 23h30m,
obrigando todo mundo a pegar um ônibus.
Na
estação da Praça 15, aguardando a barca das 3 horas, Gandhi falou
comigo, eu respondi “rapá, há quanto tempo, e tal”, mas ambos,
ele e eu estávamos baleados de sono. Suspeito que Gandhi estava
levemente biritado, mas não pude confirmar. As barcas de 3, 3 e meia
e 4 da manhã eram chamadas de “balsa dos desesperados”, o que
fazia sentido. Propus a Gandhi que sentássemos perto um do outro.
Chumbado de sono pedi que ele me acordasse quando chegasse a estação
de Niterói. Ele foi franco e me disse, voz levemente pastosa que
“também estou morto de sono e assim que sentar na barca vou
apagar”. Combinamos, então, que cada um dormiria 15 minutos,
começando por mim. Ele topou.
Quando
a barca deu o terceiro apito, anunciando a partida, encostei as
pernas na cadeira da frente, cruzei os braços, olhei em volta
(muitos bêbados), me aninhei e apaguei. Tudo muito rápido. Só que
Gandhi também dormiu e o marinheiro punk, aquele que acordava todo
mundo batendo com o jornal, não estava trabalhando e todos os outros
marinheiros sumiram, como era de praxe.
Acordei
com a embarcação encostando na estação, dando uns trancos que
eram tradicionais. Olhei para o lado, Gandhi roncava e babava.
Acordei o meu conhecido e saímos da barca e notamos logo
que...tínhamos voltado para o Rio.
O
marinheiro punk bem que poderia ter trabalhado naquela madrugada,
pensei enquanto saía
na Praça 15 em direção a uma carrocinha de milho verde que iria
estraçalhar antes de embarcar de novo tentando voltar para Niterói.
-
Parece “O Anjo Exterminador”, de Buñuel, comentei com Gandhi que
sequer respondeu.
Provavelmente
não sabia do que se tratava, mas quer saber, ele tinha razão
Tínhamos
que voltar para Niterói, uma obsessão que tomou conta também dos
personagens do filme de Buñuel, umas
pessoas que se veem presas
numa das salas de uma mansão após um jantar formal. Não há nada
físico que os impeça de sair, porém algo os faz refém de portas e
grades imaginárias.
Para
evitar problemas, duas decisões: a) subi para o segundo andar da
barca e fui para a varandinha da proa, de cara para o vento da baía.
Impossível dormir em pé com o vento na cara; b) me distanciei de
Gandhi porque cismei ele estava mesmo bebum e que o seu estado
emocional contaminava.
Cheguei
em casa já amanhecendo,
tomei um banho, bebi um café e fui para a cama. Liguei o rádio
baixinho, sintonizado na Eldo Pop FM de Big Boy e tocava a banda
alemã Nektar tocando “A Tab in the Ocean”. Com certeza não
conseguiria dormir. Quem gosta de música boa e de cama, não dorme
com uma dessas. Ou então é blefe. Não gosta nem de música, nem de
cama, mas isso é outro assunto, para outra hora. Foi o que pensei,
desligando o rádio.
Off.