Paulo Niemeyer Filho: “Em menos de 100 anos, não vamos mais falar de cirurgia”

 

Entrevista a Constança Tatsch, O Globo

Para o diretor do Instituto Estadual do Cérebro, no Rio, Paulo Niemeyer Filho, muito em breve a medicina será muito mais preventiva e menos invasiva. “A cirurgia do câncer, por exemplo, vai acabar, o caminho vai ser pela genética e imunoterapia”, explica o neurocirurgião. Algumas dessas previsões, além de explicações sobre o funcionamento do cérebro e histórias de pacientes, estão no recém-lançado livro “No labirinto do cérebro” (editora Objetiva).

Na entrevista, ele reflete sobre o fascínio e os mitos que envolvem o órgão e também sobre a experiência do IC em receber pacientes de Covid-19.

 

O Instituto do Cérebro precisou ceder leitos para pacientes com Covid-19. Como foi isso?

 

- Houve demanda da Secretaria de Estado de Saúde para que o instituto disponibilizasse os 44 leitos de terapia intensiva, o que ocorreu por três meses. Tivemos que nos adaptar, porque é um hospital especializado.

Foi muito duro, os doentes chegavam e morriam feito passarinho, em dois ou três dias. Havia um medo enorme, testávamos diariamente os funcionários. O primeiro paciente, por ironia, era um amigo no grupo de risco. Eu estava cheio de esperança, disse que tudo correria bem, mas no dia seguinte ele piorou, foi entubado e faleceu. Agora estou otimista, acho que a vacina vai resolver. O neurocirurgião tem que ser otimista porque, se sair de casa de manhã para abrir uma cabeça e pensar que vai dar errado, é melhor não abrir.

 

O cérebro interessa a cada vez mais pessoas. Mas alguns mitos persistem...

 

- O cérebro é realmente fascinante, nossa alma e nossa vida estão aqui dentro. Quando comecei a faculdade, falar do cérebro surpreendia até os colegas porque era algo muito especializado. Hoje, os programas de TV, as revistas, todos fazem matérias sobre neurociência. Mas a gente ainda ouve bobagens, como a história de que só 10% do cérebro são usados.

Na realidade, ele tem um limite de capacidade, e nós, com o progresso da ciência, vamos ajudando. Assim, você perde visão e coloca óculos, anda com dificuldade e usa o carro.

Hoje, não podemos mais viver sem computador nem telefone, porque nossa capacidade de registro é limitada. Precisamos de apoio da chamada “mente estendida”, a continuidade do cérebro.

 

“Mente estendida” faz pensar na ficção. O que pode virar realidade no futuro?

 

- Acho fascinantes os estudos sobre transmissão de pensamento. Existe energia nessas coisas, como quando pensamos em alguém que nos liga. Vários países vêm estudando isso. Parece futurista, mas não acho impossível. Penso que alguma coisa vai sair daí.

 

No livro, o senhor cita antigas visões e tratamentos no cérebro que agora parecem absurdos. O que poderá virar coisa do passado?

 

- Futuramente, não vai se falar de cirurgia, e os livros vão para o museu para lembrar uma época em que se abriam a cabeça, a barriga e o tórax do paciente. É antinatural. A cirurgia do câncer, por exemplo, vai acabar, o caminho vai ser pela genética e imunoterapia.

Olhamos para os genomas com a mesma ignorância com que, há 500 anos, abríamos um cadáver e não sabíamos para que servia o fígado ou que nome dar àquilo. Estamos entrando numa nova era da medicina, mais preventiva e menos invasiva. Vamos detectar os genes que podem causar tumores na infância e já corrigi-los. Hoje, no consultório, é comum quando digo ao doente que ele tem que operar, ele perguntar: “Mas tem que abrir a cabeça?” Já começa a parecer um absurdo. Isso deve ocorrer em menos de 100 anos.

 

Há muitos exames complexos e essenciais, mas o senhor é muito guiado pelo exame clínico do paciente. Qual o valor disso?

 

- O exame clínico é insubstituível. Há uma tendência de se valorizar a máquina, ela é fundamental, mas os jovens estudantes têm pressa para aprender como operar, como abrir uma cabeça. Antes disso, há o tempo precioso de aprender a examinar o doente.

No livro, conto o caso de um paciente que tinha um pé caído e só pesquisavam a coluna. Ele chegou e disse: “ninguém sabe o que tenho”, e botou os exames na mesa. Mas quando comecei a examiná-lo, ele ficou surpreso. Já tinha passado por vários médicos e nunca fez um exame clínico. Ali ficou claro que o problema era no cérebro.

 

O senhor tem o costume de ver sintomas nas pessoas na rua?

 

- Tenho. Há várias doenças que você reconhece olhando, não precisa examinar. Uma vez, na fila do aeroporto, tinha um homem na minha frente com uma contração ritmada na face, de um lado só. Vi que era um espasmo hemifacial, doença que se confunde com o tique nervoso.

Eu sabia de um tratamento novo que pouca gente conhecia, até no meio médico. Eu disse: “Desculpe me intrometer, é que sou médico. O senhor tem um espasmo hemifacial, e existe uma cirurgia nova para isso, o senhor vai ficar bom se operar”. Ele respondeu de forma meio seca que iria até o dr. Paulo Niemeyer. Achei graça e fiquei quieto. Depois de dez anos ele entrou no meu consultório, perguntando se eu me lembrava dele, “aquele da ponte aérea”. Continuava com o espasmo, eu o operei e ficou ótimo. Mas é difícil falar, a pessoa pode achar você intrometido.

 

No livro, o senhor menciona momentos solitários de decisão durante a cirurgia. Como tomá-las?

 

- A cirurgia neurológica é a única que pode deixar sequelas graves por si só. Por isso é importante a conversa antes da cirurgia com os pacientes. Mas há um limite. Então você diz os riscos maiores para não apavorar o paciente. Mas, às vezes, tem um risco que você não imagina, se defronta com ele na cirurgia e não falou com o paciente sobre isso.

Acho que essa relação médico-paciente é muito importante para conhecer o psiquismo do doente, entender o que aceitaria ou não e como reagiria diante de um resultado que não fosse o perfeito. Tive uma doente que, para tirar o tumor todo, havia o risco da paralisia facial. Era uma moça, eu tirei o tumor todo porque me pareceu o melhor. Ela ficou com a paralisia facial e no primeiro momento se disse satisfeita. Mas depois de um ano voltou e falou que se soubesse que era assim, preferia ter ficado com o tumor. A paralisia era muito pior do que ela imaginava. Foi duro ouvir isso porque achei que tinha feito o melhor, mas é difícil saber como as pessoas vão viver com uma possível sequela.

Essa questão para mim ficou resolvida: a partir dali eu digo que, se necessário, vou deixar um pedaço do tumor para evitar a paralisia facial. Essa perfeição de tirar o tumor todo pode ser boa para o médico, mas para o doente pode ser um desastre.


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