No rastro de "O Uivo" nem sempre causas geram efeitos ou meios geram mensagens
Cena do filme Quadrophenia
A mídia (meio) sempre surpreende
quanto injeta suas doses de componente ilógico. Ontem escrevi sobre carros aqui
na Coluna e, para a minha surpresa, o texto bateu recorde de visitação. E tudo
começou ao som da música do acaso. Por várias razões, ora óbvias, ora ocultas,
a semana passada foi dura. Mas, como todo passado a semana passada passou.
Quando
era pequeno e viajava por aí com meu pai (viajamos muito, mas muito mesmo),
especialmente para Teresópolis, ele contava que nos anos 1960, a bordo de
carros importados com motores refrigerados a água, era forçado a parar duas ou
três vezes nos acostamentos, depois batizados oficialmente de "refúgios".
Era para baixar a temperatura da água do radiador. Subir a longa serra naqueles
tempos, naqueles carros, exigia paciência e, sobretudo, tenacidade.
Como acho
que quando o presente nos espreme com suas garras não virtuais é natural que
busquemos os acostamentos e refúgios do passado; esperar por lá até os
coquetéis molotov sossegarem.
Foi numa virtual escapada dessas
que lembrei de meu avô paterno, que ao contrário das descrições românticas e
lúdicas que em geral são feitas, era um cara marrento, sisudo, anti-social. Mas
eu adorava ele porque ele adorava os netos. A maneira dele.
Passei a
infância em Angra dos Reis e era para lá que meu avô ia descansar de vez em
quando. Cada vez que chegava trazia um carro novo. Era apaixonado pelos
automóveis.
Eu tinha uns sete ou oito anos
quando ele apareceu com um (pasmem!) Studbaker 1955 cinza-chumbo, carro de
design não ousado e atrevido para a época que não colou. Eu me apaixonei por
aquele carro e ficava horas olhando, olhando, olhando até ouvir a frase mágica
do meu avô: "vamos até o centro para comprar umas coisas". E
passeávamos no Studbaker sob o olhar assombrado das pessoas.
Numa dessas incursões, fumando
seus indefectíveis charutos ao volante, meu avô virou para mim e disse
"você vai ser um apaixonado por automóveis." Na mosca.
Para terem ideia, durante muito
tempo estou para comprar um Ford Taurus (de 1997 até o início dos anos 2000)
porque na minha cabeça ele revivia a saga do Studbaker. Design atrevido, ultra
moderno, que também teria assustado os consumidores nos Estados Unidos.
O Taurus foi uma das estrelas do
genial filme "O Show de Truman" (1998) de Peter Wir, estrelado por
Jim Carrey que mereceu, sim, o Oscar. Mereceu, não levou e ficou indignado.
Essa
conexão semana brava-meu avô-carros-o show de Truman-coluna sobre carros faz
sentido. Mas em seu magistral coice chamado "O Uivo", de Allen
Ginsberg, poema que atirou a América macartista contra o paredão de sua própria
alienação, caretice e ignorância, em 1956, parece querer dizer em sua aflição,
asfixia e angústia que as causas nem sempre geram efeitos. Causas podem não
causar nada. Ou não?
Em uma
das primeiras leituras de "O Uivo", em San Francisco, Califórnia,
Ginsberg foi preso por "atentado violento ao pudor". Solto após
pagamento de fiança, disse a imprensa: "Uivo é uma unidade de respiração única. A
minha respiração é longa — isto é a medida, uma inspiração física e mental do
pensamento contido no estiramento de uma respiração."
Ninguém entendeu porque poucos tinham a coragem de ler (e,
principalmente) ouvir "O Uivo" de ponta a ponta porque a constatação
de que outra América, menos boçal, precisava ser descoberta urgentemente
incomodava.
Aliás, Beats como Ginsberg, Jack Kerouac e William Burroughs
eram incômodos sociais, estorvos políticos e levou tempo para as suas propostas
entre aspas para um mundo não velho fossem reconhecidas.
Todo mundo tem o seu Uivo. O meu é
abafado, mas é uivo. Ou, contrariando um outro herói de cabeceira, Marshall
McLuhan, eventualmente não acho que o meio seja a mensagem. Simplificando,
discordo que a mídia gere notícias. Até segunda desordem, a mídia é eco e não
som, mas como Allen Ginsberg chegou a dizer que o seu Uivo podia ser chamado de
tudo "até de mídia pífia e vagabunda", no caso o meio era a mensagem,
sim.
Fato é que retirei a corda do pescoço,
Entrei no meu virtual Morris Oxford 1952, engatei a primeira e sigo subindo a
serra do hiper-realismo cotidiano após ter prometido ao espelho que deixarei de
ser otário.
Antes da partida, rumo ao presente, dei um beijo no eu avô.
E no meu pai.
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