A incrível ressurreição do The Who - por Diego A. Manrique - El País, Madri
Houve um tempo em que o The Who era sinônimo de rock. Rock
visceral e instruído. Sua curva de aprendizado foi surpreendente: o quarteto
dominou rapidamente a arte de criar singles fascinantes até se fimar no formato
do LP, às vezes duplo e com vocação narrativa (o que foi chamado, grosso modo,
de “ópera rock”).
Seu líder e compositor, Pete Townshend, revelou-se um
comentarista erudito da teoria e prática da música popular; abandonou o
arrogante “espero morrer antes de ficar velho” para fugir do tópico do rock
como música juvenil. E tudo isso enquanto a banda mantinha a força avassaladora
de seus shows.
The Who saiu de seu estado de graça de uma forma ruim, entre
escândalos, broncas, tragédias. Sua seção rítmica foi se desintegrando, com as
mortes repentinas do baterista Keith Moon e, 24 anos depois, do baixista John
Entwistle. No final de 1979, 11 de seus fãs morreram durante uma correria na
entrada de um show em Cincinnati.
Townshend, desencantado e mergulhado em uma
crise pessoal, anunciou o fim da banda nos anos oitenta. Foi uma decisão
francamente prematura, que ele mesmo relativizou com aparições esporádicas: um
certo peso na consciência os impulsionava a se reunir para eventos de caridade.
Seu público manteve sempre um grande entusiasmo. A música do
The Who, aparentemente arisca e agressiva, demonstrou grande resiliência,
principalmente em seus discos conceituais, potencializados pelo cinema. Tommy
se transformou até em teatro musical, e Quadrophenia desencadeou a segunda onda
do movimento mod.
Assim, o grupo tinha o vento a seu favor quando se reuniu em
1989 para tocar seus grandes sucessos com eficientes músicos jovens. Com
considerável dignidade, a banda se transformou em uma mina de ouro. Não ficou
nada de fora: autobiografias, recopilações, álbuns solo, apresentações com
orquestra sinfônica, Las Vegas, grandes festivais.
O que ninguém imaginava era que em 2019, 55 anos depois da
fundação do grupo, fosse sair um disco com músicas novas. Mas saiu. Chama-se
WHO (Polydor) e superou todas as expectativas. Estamos falando de uma banda
bicéfala na qual mal existe relação humana ou criativa entre Townshend e seu
porta-voz, Roger Daltrey. Imagine: o cantor não foi às sessões de gravação com
Townshend: registrou suas partes vocais posteriormente, em outro estúdio.
Um absurdo, é claro, mas no mundo do The Who tudo funciona
conforme regras muito particulares. Eles ignoraram seu prazo de validade:
ambos, principalmente Townshend, sofrem de surdez. O que os move é a vontade
artística em diferentes graus: Pete, de 74 anos, acaba de lançar um romance, “The
Age of Anxiety”, que
também quer transformar — oh, não — em uma “ópera
multimídia”. Mais prático, Daltrey, de 75 anos, insiste na necessidade de
atividade, dentro ou fora do The Who, para evitar o precipício que, segundo
ele, aguarda os aposentados com muito tempo livre.
WHO tem uma capa tão atraente quanto enganosa. Obra de Peter
Blake, o criador da capa de Sgt. Pepper’s, que aqui evoca os anos sessenta com
uma perspectiva mod. O que pode nos levar a pensar no prometido, mas nunca
entregue, disco de versões, ou em uma volta consciente ao som de suas origens.
Mas não, embora se incluam faixas como Detour e Got Nothing to Prove, que
poderiam ter combinado com The Who Sell Out (1967). O novo disco tem um
respeitável acabamento moderno, obra do produtor nova-iorquino Dave Sardy,
embora soe nitidamente como The Who, algo que certamente explica seu aparente
sucesso de vendas.
O que torna WHO único é que Townshend não esconde sua idade e
sua condição. O disco começa com All This Music Must Fade, onde o compositor
parece avisar aos millenials que seus ídolos passarão de moda. Também expõe
obsessões da terceira idade, como a possibilidade da reencarnação (I’ll Be
Back). Recorda uma de suas primeiras experiências sexuais em She Rocked My
World, envolvida por um fundo de spanish jazz que parece inspirado pelo selo
CTI.
Sem esquecer que Townshend tem plena consciência de que vive
no presente.
Devorador de notícias, ele se inspira na tragédia do incêndio da
Grenfell Tower londrina (Street Song), na interminável guerra do Afeganistão
(This Gun Will Misfire), na vergonha dos presos de Guantánamo (Ball and Chain)
e na polarização social gerada por questões como o Brexit (Rockin’ in Rage).
Contra toda a lógica, em 2019 o The Who mantém sua relevância. Há algo de
verdadeiro nesse mito do rock como elixir da juventude.
Comentários
Postar um comentário
Opinião não é palavrão. A sua é fundamental para este blog.
A Comunicação é uma via de mão dupla.