A névoa da guerra: Walter Bosshard, Robert Capa e o conflito sino-japonês. Por Joaquim Toledo Jr*.- Zum, revista de fotografia
“Robert Capa, um dos raros mestres da novíssima arte da
reportagem fotográfica, cujas fotos da guerra civil espanhola foram um dos
principais furos do ano, está agora na China, fotografando outra grande guerra
para a Life”, anunciava a edição de 16 de maio de 1938 da revista
norte-americana.
Ao contrário das imagens do conflito na Espanha, as fotos
enviadas por Capa da cidade de Hankou — a “Chicago chinesa” e então centro
militar do país, explicavam as legendas — não mostravam “morte e destruição”,
mas a euforia pela primeira vitória militar do generalíssimo (comandante
supremo das Forças Armadas) Chiang Kai-shek desde a declaração de guerra ao
Japão em 1937, seis anos após a ocupação da Manchúria pelos japoneses em 1931.
A foto da capa, hoje icônica, mostra um jovem soldado chinês
em posição de atenção, o rosto rijo de quem aguarda ordens para enfrentar o
campo de batalha: “um defensor da China”, diz a chamada. O caráter escultórico,
austero e tensamente imóvel do retrato contrasta com o estilo dramático,
politicamente romântico, das fotos que o fotógrafo húngaro, então radicado em
Paris, tirara do conflito na Espanha.
A fotorreportagem mostrava escoteiros em procissão pelas ruas
de Hankou, carregando retratos gigantes de Sun Yat-sen, o pai da revolução
republicana de 1911 que encerrara
milênios de dominação imperial na China, morto em 1925 e até hoje um dos
principais heróis nacionais do país; mulheres com “pés de lótus”, eufemismo
dado à deformação resultante da prática de amarrar os pés de meninas para que
se adequassem a padrões de beleza arcaicos, tradição abolida apenas pouco tempo
antes; e crianças gritando palavras de ordem da Frente Unida, como ficou
conhecido o esforço conjunto de nacionalistas e comunistas, então em trégua
provisória, para enfrentar as tropas japonesas. “Lutemos para retomar nosso
território!”, “Expulsem os inimigos!”, “O espírito da China é imortal”,
exortavam os cartazes.
No entanto, o entusiasmo com a vitória na batalha de
Taierzhuang, se compreensível, era algo exagerado. O governo do Guomintang, partido
nacionalista sob o comando de Chiang Kai-shek, estava em retirada, se
embrenhando no território chinês em busca de espaço para se reorganizar. Poucos
meses antes, navios e aviões japoneses haviam bombardeado Shanghai, episódio
imortalizado em Sábado sangrento, fotografia de H. S. Wong, na qual um bebê
gravemente ferido chora em meio aos escombros da estação de trem do sul da
cidade.
O bombardeio de Shanghai ainda seria ofuscado pela
brutalidade da ocupação de Nanquim pelas tropas japonesas. Durante sete
semanas, entre dezembro de 1937 e janeiro de 1938, soldados japoneses pilharam
a então capital do país, mataram cerca de 50 mil pessoas e estupraram dezenas
de milhares de mulheres no que fiou conhecido como o Estupro de Nanquim.
Os editores da Life haviam utilizado o mesmo entusiasmo algo
injustificado na edição de 13 de setembro de 1937, na cobertura da batalha por
Shanghai. A reportagem sobre A guerra em Shanghai, então território
independente que incluía áreas de concessão francesa e inglesa, comemorava a
iniciativa dos oficiais chineses em assumir uma estratégia ofensiva, e não
meramente defensiva, frente às agressões. “Esquadrões chineses contra-atacaram
a partir de 28 de agosto”, diz a reportagem, “mostraram-se eficientes, mas até
3 de setembro não haviam sido capazes de afundar um navio de guerra japonês”.
Uma sequência de seis fotografias do suíço Walter Bosshard,
residente na China desde 1931, mostrava escombros de uma aeronave que o governo
chinês alegava ser de um bombardeiro Heinkel, de fabricação alemã, pertencente
à força aérea japonesa, supostamente derrubado por caças chineses após um
ataque à base aérea de Nanquim.
Numa guerra de informação típica dos conflitos modernos,
chineses e japoneses exageravam o tamanho dos estragos que infligiam uns aos
outros. Embora mantivesse boas relações com o alto comando do governo
Nacionalista, incluindo o próprio generalíssimo e sua esposa Soong May-ling — a
imperiosa Madame Chiang — Walter Bosshard foi obrigado a entregar seus
negativos.
***
Walter Bosshard e Robert Capa: A corrida pela China,
exposição em cartaz no Museu de Arte da Universidade Tsinghua, em Pequim, tem
como premissa a rivalidade profissional dos dois fotógrafos europeus na
cobertura do conflito sino-japonês para a imprensa ocidental em 1938.
Organizada em seis partes (mais uma sala dedicada a filmagens de Bosshard em
sua viagem até o quartel-general dos comunistas em Yan’an), recobre, no
entanto, um período mais extenso e levanta, às vezes inadvertidamente, questões
sobre o complexo emaranhado entre fotografia, guerra, mídia e propaganda
política na primeira metade do século 20.
Cinco das seis seções de A corrida pela China são dedicadas
ao trabalho de Walter Bosshard na China, e duas incluem fotos tiradas antes do
agravamento da guerra com o Japão. Em 1931 Bosshard registrou a invasão
japonesa da Manchúria para a pioneira revista ilustrada alemã Berliner
Illustrierte Zeitung. Entre 1933 e 1938, Bosshard teve endereço fixo em Pequim,
de onde realizou diversas viagens e trabalhos para agências e publicações
norte-americanas e europeias.
Em suas viagens pelo interior da China, Bosshard registrou
uma população majoritariamente rural, na qual o corpo humano ainda era a
principal força motriz. Uma sociedade que, alheia ao processo de modernização
em curso nas grandes cidades costeiras do leste do país — e ignorando por ora
os horrores da guerra moderna —, era composta não apenas de trabalhadores
braçais como também de artesãos habilidosos, dispersos por milhões de pequenos
ateliês, que produziam itens mais raros e sofisticados como agulhas, sal,
artigos de papel e brinquedos para crianças, vendidos em feiras esporádicas ou
por mascates nas regiões mais isoladas.
RADAR
A névoa da guerra: Walter Bosshard, Robert Capa e o conflito
sino-japonês
Joaquim Toledo Jr.
Publicado em: 17 de dezembro de 2019
Força aérea chinesa (dupla exposição), de Walter Bosshard,
anos 1930 © Fotostiftung Schweiz / Archiv für Zeitgeschichte
*Joaquim Toledo Jr. é doutor em filosofia pela Unicamp e
professor no curso de arquitetura e urbanismo da Escola da Cidade (SP).
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