“Muito estranho: todos os passarinhos - todos - desapareceram da vizinhança desde ontem. Isto não é uma metáfora. Repito: isto não é uma metáfora.”


A solidão é uma velha conhecida. Íntima. Vivemos juntos há muitos anos, em paz na maioria do tempo como Gaza e Tel Aviv. Angústia. De vez em quando abre a porta da sala com cara de íntima, senta no sofá e depois de ficar algum tempo olhando para o teto, pede um café forte. Houve um tempo em que o simples aroma (?) de sua chegada me deixava apavorado. Tempos em que eu me relacionava mal com a solidão, medo de mim, coisa de garoto, sabe como? Mas é a primeira vez que fico sozinho à força, compulsoriamente, e à força tudo muda. Tenho ocupado o meu tempo com o de sempre: trabalho. Gosto do trabalho porque gosto do que faço e desde o dia em que inaugurei meu escritório caseiro percebi que trabalho muito mais e melhor. De vez em quando preciso sair, coisa de 10 minutos, vou até ali comprar víveres e volto, adestrado como golfinho de Miami, paulistinha de circo. No lugar onde encontro os víveres poucas pessoas temem-se mutuamente (será que existe isso, essa composição, temem-se mutuamente?), inclusive eu. O leve receio de um mês atrás foi evoluindo para receio total, medo, pavor, pânico, desespero. A sequência foi essa. No ir e vir rápido da odisseia em busca dos víveres, vejo tudo fechado, deserto, lacrado, um pouco triste. No bairro, os prédios de 15, 17, 20 andares protagonizam a anti paisagem urbana que, por aqui, abriga poucas árvores, castradas esta semana em prol da fiação zoneada. Noto que o céu está mais nítido, leio que há menos poluição. Reparo que os passarinhos não cantam. Aliás, os passarinhos sumiram, será que isso significa algo? Edney Silvestre escreveu no Facebook: “Muito estranho: todos os passarinhos - todos - desapareceram da vizinhança desde ontem. Isto não é uma metáfora. Repito: isto não é uma metáfora.” O problema é esse, não é uma metáfora. Parece que o Edney notou a ausência na Gávea, eu noto em Icaraí e vocês, repararam também? Onde? Meus dois interlocutores prediletos, via telefone, são meu irmão de sangue Fernando Mello e o afetivo, Alvaro Fernandes. Ambos são sábios advogados, estão presos em casa, cozinham, lavam, passam e acabaram me incentivando. Como Ben-Hur trepado na biga, encarei o forno. Microondas. Baseado em receitas que estão no You Tube, dei um pequeno passo para a humanidade, mas gigantesco para mim: comecei a cozinhar. Faço meu almoço, meu jantar, meu lanche e agradeço aos desconhecidos de canais como Micro Sobrevivência e outros que ensinam a atolados como eu a degustarem iguarias que eles mesmo fazem. Posso falar? Está saboroso, tenho gostado, porque ousei ir mais longe e até com alho estou lidando. O mundo parado me assusta. Muito. Parece um B 52 com as oito turbinas desligadas. Está planando, planando, mas até quando? Ou, pior, até onde? E ninguém sabe informar quando os motores serão religados. A falta de perspectiva me apavora mais do que a situação atual. Dizem que é da condição humana, a ansiedade, angústia e até leve depressão como a falta de horizonte. Mesmo que breve e provisória. E não venham sugerir que eu ligue o foda-se. Ninguém consegue ligar o foda-se numa crise dessas, fora o Alienista de Machado de Assis, Charles Bukowski jogado num canto de botequim as 2 da manhã ou os patologicamente loucos. Fora isso, é cascata de outono.

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