A Itabira de Cada um – Martha Batalha, O Globo

        

Na última coluna escrevi sobre um beija-flor com a asa machucada que encontrei na rua. Muita gente quis saber o que aconteceu, respondi e-mails e escrevi nas redes que o bichinho se recuperou. O que não disse foi o que aconteceu durante os três dias que passamos juntos. Com o beija-flor, não muito. Dormiu numa caixa de sapatos, tomou água com açúcar, ficou bom e foi embora. Comigo, a experiência foi como um corte na lona de um cenário, cenário a vida que eu tenho agora, corte para uma memória de infância.

Início dos anos 1980. Eu com 8 anos, perambulo descalça no condomínio. Ali na frente, caído junto a uma árvore, está um filhote de passarinho. Corro com ele para casa, onde minha mãe alimenta o bicho com mingau de milho. De noite, ele dorme sobre fiapos de jornal dentro de uma cuia de chimarrão. No dia seguinte, escondo a cuia na mochila e vou para a escola. A mochila pia, crianças se aglomeram em torno da minha carteira, a professora aparece e eu choro tanto que o bicho vira mascote, cuia disposta entre os dicionários da estante.

O tempo passa. Dias? Semanas? Não sei. O passarinho foi meu primeiro amor de devoção. Mantê-lo vivo me fazia feliz de um modo profundo, eu conheci com ele o prazer do doar-se pelo doar.

Numa noite de junho, ele me acorda piando. Pensei em levantar, mas havia monstros no quarto, e fazia um frio terrível. Inverno no Alto da Boa Vista é assim como ter estalactites de gelo no lugar dos ossos. Forcei o sono. De manhã, enfio a mão na cuia e meus dedos tocam o filhote morto.

No ano seguinte, eu ganho dois pintinhos como brinde da pescaria na festa junina da escola. O aviário é uma caixa de papelão na área de serviço, com uma luminária de clipe presa na borda. Pintinhos se espremem sob a lâmpada, olhos fechados pelo conforto. Às vezes se afastam e esfriam, eu me preocupo e empurro os dois para o calor. Num dia muito frio (e eu já conhecia as consequências dos dias frios), enrolo os dois num tapete de banheiro sob a luminária e vou para o quarto ler. Meia hora depois eu sinto o cheiro de queimado. Eu havia assado os pintos.

A escritora Ann Lammot diz que só existem dois tipos de prece. Um é por favor por favor, por favor. O outro é obrigada, obrigada, obrigada. Eu geralmente funciono no modo obrigada (a não ser quando rezo pelo Brasil, e peço —quer dizer, imploro, exijo e insisto — para a família Bolsonaro virar pó ou capítulo passado num livro do Eduardo Bueno, e... vixe, essa é outra crônica, sai pra lá, Bolsonaro. Ele não, hoje não).

Mas como eu ia dizendo, eu geralmente funciono no modo obrigada. A não ser quando rezo pelo Brasil, ou quando um beija-flor aparece, e me força a dormir com a caixa de sapatos ao lado da cama. Pedi demais para ele não morrer. As décadas entre o passarinho na cuia de chimarrão e o beija-flor na caixa de sapatos haviam se dissipado, a noite fria dos meus 8 anos era seguida por essa. Se ele acordasse, eu seria capaz de cuidar, se fosse capaz de cuidar, eu não teria medo de frio, se eu não tivesse medo de frio, não queimaria os pintinhos. E seguiria por aí, num caminho de condicionais bonitas.

O final dessa história é mais ou menos feliz. O beija-flor sobreviveu. Mas as minhas lembranças não se redimiram. São como a Itabira de Carlos Drummond, resumida a uma fotografia na parede. Coisinhas de nada, diante do monte de vida. Mas como doem.

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