A Lira do Delírio

 

Nesta quarta-feira precisei ir ao miolo do Centro de Niterói onde os ecos de uma parte de minha história reverberam nos rebocos rachados e cheios de limo de casas, ou quase casarões e sobrados que estão preservados por uma razão não muito digna.

Estão abandonados. Desde sempre.

Comecei a trabalhar naquela região. Naquela região nasceu a Rádio Fluminense FM.

Nesta quarta-feira à tarde eu estava de bicicleta, há tempos o meu meio de transporte.

O miolo do Centro de Niterói, - vou tentar explicar – são aquelas quadras onde ficam ruas como Visconde de Itaboraí, Visconde do Uruguai, Marques de Caxias, Saldanha Marinho.

Podemos dizer que o epicentro do miolo é o Jardim São João.

Pedalando por ali, devagar, cruzando as extensas e organizadas filas de barracas de camelôs, a sensação é meio de melancolia, abatimento, desalento.

Talvez o que estejam sentindo aquelas casas que um dia, em algum século que já voou, tenham sido alegres como os galos, as noites e os quintais.

Caramba, como gosto do Belchior.

Pedalei a Visconde de Uruguai, entrei na São João, parei, amarrei a bicicleta num poste na beirada do Jardim para ir a uma reunião e um cara me chamou.

Não o conhecia.

Mas ele vinha reto, de blazer, como um tubarão tigre em Saquarema e falou umas coisas que não entendi.

Estava de máscara.

Ele também não me conhecia. Tirou a máscara e disse que trabalhava para um “oculista” que fazia exame de vista grátis desde que eu fizesse os óculos na ótica recomendada por ele.

Há tempos estou para marcar um oftalmologista, mas o meu plano de saúde é enrolado, confuso e descarado, e só consigo agendar alguma coisa depois de distribuir coices no Reclame Aqui. Aquilo funciona: www.reclameaqui.com.br .

Topei.

Falando sem parar o cara foi na frente. Lojas e mais lojas espalhando bandejas junto a calçada, cheias de calcinhas, cuecas, sandálias, carteiras de dinheiro, bermudas, chaveiros, lâmpadas, chaves de fenda.

Entramos numa galeria meio escura e esquisita. E decadente. E suja.

- Não repara não, bradou o anfitrião.

No final da galeria uma pastelaria e, em frente, uma ótica.

- Trouxe um cliente, comemorou o anfitrião.

Uma moça sentada numa mesinha, séria, perguntou.

- Você vai aproveitar essa armação ou quer fazer outra?

- Eu disse que queria fazer o exame de vista grátis e caso precisasse aumentar o grau de meus óculos iria por lentes novas na minha armação.

- É o contrário. Primeiro você escolhe os óculos, faz o orçamento e depois faz o exame em outro endereço. E o exame não é de graça. De graça é essa minha consulta aqui.

Desconfortável, o anfitrião foi lá dentro e buscou um copo d’água.

- Quer?

- Não, respondi.

- Sua lente é aquela que escurece?, perguntou a vendedora.

- É, mas quero uma multifocal básica. Muito básica.

- Oitocentos reais, mas não é digital.

Não entendi, mas fui em frente.

- Lente não digital é lente analógica? O que é lente analógica?, perguntei.

- Não sei...você que disse que é analógica, eu disse que não é digital, ela rebateu.

- Certo, e lente não digital é o que?

- Também não sei. Não é digital e nem anti-reflexo.

- E anti-reflexo custa quanto?

- Novecentos.

Aflito, o anfitrião agradeceu por mim e me fez sair de lá. Quis me levar a outra ótica.

Saímos da galeria, atravessamos a rua São João e ele entrou numa ótica.

- Lente Kodak, anti-reflexo por R$ 750,00. Mais óculos reserva por R$ 300,00, sentenciou uma vendedora bem humorada, pra cima, inteligente, insinuando preencher um pedido para oficializar a transação.

- Semana que vem eu volto, tenho uma reunião. Cortei.

- Semana que vem vou estar de férias. Fala com o meu patrão, aquele magrinho ali abaixado atrás da porta.

Fui a reunião que acabou no fim da tarde. Pedalei mais pelo miolo do Centro. Só umas poucas casas com as luzes acesas. A maioria virou comércio popular.

A noite o Centro fica deserto. E triste. E melancólico. E abandonado.

Como me senti lá nos anos 1970, quando terminou “A Lira do Delírio” no cinema Central.

 


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