Libertação e expectativas prisioneiras, por Margareth Dalcolmo
Impossível não reproduzir este profundo artigo da cientista Margareth
Dalcolmo, publicada no Globo de hoje:
É desconcertante no bom e no mau sentido,
constatar os excessos do ser humano, após mais de dois anos de pandemia, quando
deveríamos com prioridade estar vencendo as desigualdades vacinais para
proteger a população, em ver eclodir uma guerra evitável. Ver o planeta, ainda
que muito diversamente, se preparar para pensar um amanhã, nas especificidades
das culturas.
Quando olhamos as imagens de destruição de
prédios na Ucrânia, o que vemos é um excesso de realismo, como num perverso
jogo de Lego ao avesso; de lares e de vidas, ao vivo em nossas salas, com
restos de sapatos ou pedaços de bandeira.
Fica muito difícil acreditar na humanidade como
cuidadora de seu próprio destino. Um amanhã sobre o qual os filósofos contemporâneos,
não apenas Giorgio Agambem com sua controversas assertivas sobre a magnitude da
pandemia, desde o início, mas Bruno Latour, Judith Butler, ou mesmo Paul
Preciado, com sua antológica análise “Aprendendo do vírus” pensam e escrevem.
Pensam e ousam dizer que o fenômeno, a exemplo de epidemias anteriores, geraria
um momento transformador no planeta, como o que as pestes da segunda metade do
século XIV propiciaram resultar, o Renascimento e tudo o que dele emana.
Difícil, quase impossível não nos contaminarmos
pelo desalento nesse momento do mundo. Consola-nos os progressos da ciência, as
descobertas das vacinas e dos novos remédios, que esperamos estejam disponíveis
entre nós, em breve, e o reconhecimento de que ela sai vencedora, a despeito de
tanto obscurantismo de que se travestiram os dias mais dramáticos pelas quais
passamos.
Preocupa-nos o cenário epidêmico europeu, porque
sabemos que o emulamos nas ondas anteriores e o mesmo pode ocorrer agora, e
igualmente o asiático, uma vez que fica claro o papel primordial que tiveram as
vacinas, sobretudo nos grupos de população mais idosa e mais vulnerável: a
China continental e Hong Kong deixaram de vacinar dois terços da população
idosa, e hoje pagam o preço de transmissão da cepa Ômicrom e suas variantes.
Na semana em que se celebra o Dia Mundial da
Tuberculose, em 24 de março, doença que ainda atinge quase dez milhões de
pessoas e mata dois milhões por ano no planeta, constatamos os efeitos
devastadores que a Covid-19 causou, tanto em redução dos diagnósticos quanto
nos tratamentos, muitos interrompidos porque os serviços não funcionaram
adequadamente. A OMS considera que o retrocesso será de pelo menos cinco anos
nos planos de erradicação da doença nas próximas três décadas.
Mesmo no Brasil, onde a tuberculose é de
notificação compulsória, e historicamente operamos com um bom programa de
controle, com tratamentos governamentais e sem conflito entre a medicina
privada e pública, sentimos o efeito da pandemia, com 40% a menos de testes
moleculares para diagnóstico nos últimos dois anos, o que forçosamente
implicará num aumento de incidência nos próximos anos.
E como se diz no popular, “desgraça pouca é
bobagem”, a Ucrânia é um país de altíssima carga epidemiológica de tuberculose,
com mais de 30 mil casos por ano, incidência de 75 casos por 100.000
habitantes, e o maior em taxa de formas multirresistentes aos fármacos da
doença. Em se tratando de enfermidade altamente transmissível e no curso de uma
epidemia de doença viral, como a Covid-19, com tantas similitudes na
sintomatologia, e somado às condições de confinamento em bunkers e estações
fechadas de metrô, não nos é difícil prever o impacto na transmissão imposto
por essas infernais condições em que vivem hoje os ucranianos.
Organizações humanitárias como Médicos sem
Fronteiras, com larga experiência em operar em zonas de conflito e em lidar com
essas formas de tuberculose, tem tentado fazer chegar os medicamentos
necessários aos complexos esquemas de tratamento exigidos. Mas sabemos que a
logística nessa situação pode ser fatal, ceifando vidas por morte evitável.
Comentários
Postar um comentário
Opinião não é palavrão. A sua é fundamental para este blog.
A Comunicação é uma via de mão dupla.