Siamês




O oficial de justiça Jacy mordeu a nuca de uma noviça sênior no Mercado Municipal. Arrancou sangue. Detido e julgado, foi condenado. Problemas psiquiátricos. Foi parar no regime semiaberto.

Obrigado a dormir na prisão todos os dias, mas tinha direito a visitas íntimas. A única que recebia era de Carmelita, codinome da Noviça Sênior Severa, a noviça do Mercado Municipal, que apresentou uma falsa certidão de casamento com Jacy, que não a conhecia. Só a viu de costas, no dia do ataque no Mercado Municipal.

As visitas íntimas eram tão tórridas e lancinantes, que num domingo os agentes penitenciários tiveram que invadir a sala de encontros. Noviça Severa, digo, Carmelita estava nua, pendurada de costas por correntes numa grade da janela da sala, enquanto Jacy a chicoteava e ao mesmo tempo jogava álcool 90 graus nas suas costas. Carmelita, digo, Noviça Sênior Severa, gritava “bate e faz queimar o corpo da sua...sangra a nuca da sua ... como aquele dia no mercado. Bate, meu ... Bate mais forte e depois... a minha... com esse... balaústre, meu...!

A festa acabou. Os gritos de Carmelita alvoroçaram o pavilhão, engolido por volúpia coletiva. Temia-se uma rebelião. Os homens não paravam de bater nas grades como símios enquanto Carmelita se vestia (saia azul marinho abaixo do joelho, blusa branca sem decote, sapatos baixos) e, com uma pequena mala na mão, foi conduzida para fora da prisão por um grupo de guardas.

Na rua, Noviça Sênior Severa entrou num táxi e pediu para parar num posto de gasolina. No banheiro do posto, trocou as roupas pelo hábito e seguiu para a sede Congregação. O motorista de vez em quando olhava pelo retrovisor, desconfiado.

Entrou sem ser vista. Em seu quarto na sede da Congregação, Noviça Sênior Severa abriu uma gaveta no fundo do armário e pegou uma caixa de metal. Muitos dólares que conseguiu guardar ao longo de anos, presentes de um tio avô milionário que vivia em Belize. Pôs a caixa na mala. Na mesinha de cabeceira escreveu um curto bilhete para a madre superiora. Tirou o hábito, vestiu a roupa de Carmelita e, somente com a mala, saiu, sem chamar atenção.

Noviça Sênior Severa, a Carmelita, desapareceu. O policial dizia a Congregação que ela “pode estar em qualquer lugar entre os bordéis da Praça Mauá e o Vaticano. Supomos que tirou documentos falsos e caiu no mundo”.
Jacy foi solto em uma manhã de domingo. Tinha cumprido sua pena de forma exemplar. Seu advogado provou que Noviça Sênior Severa e Carmelita eram a mesma pessoa, logo, a dentada de Jacy no Mercado Municipal ganhou uma outra abordagem. Em sua defesa, o advogado vociferava que “aquela mulher supostamente atacada por meu cliente encantou-se por ele. A ponto de tirar o hábito e fazer-lhe visitas íntimas tórridas disfarçada de mulher comum, com uma certidão de casamento falsificada (...) o furor uterino da falsa vítima transformou aquela unidade prisional num barril de pólvora pansexual (...) 
Meritíssimo, meu cliente foi atraído por aquele furor uterino, que hoje corre o mundo com nome falso, fazendo não sabemos o que”.

Seu tio o guardava do lado de fora. Jacy entrou no carro e foi para casa. Sua tia e dois primos o esperavam com uma macarronada. Jacy subiu para o segundo andar da casa de classe média, tomou um banho, vestiu uma bermuda, camisa polo e desceu para almoçar. Seu gato siamês, feliz, pedia afagos na cama. Jacy fez carinhos e desceu.

Estava feliz, mas não era de rir muito. Seu tio contou que, apesar do julgamento favorável, Jacy acabou aposentado por transtornos psiquiátricos cíclicos. A família soube do tumulto Jacy-Carmelita-Noviça sênior Severa-rebelião dos tarados, mas não tocou no assunto.

No dia seguinte, Jacy acordou, tomou um banho, fez a barba, vestiu um terno, cumprimentou o siamês, desceu a escada, tomou café da manhã, saiu, abriu e fechou o portão da casa e, na rua, lembrou que não tinha nada para fazer.

Sua casa de dois andares ficava numa esquina movimentada, cercada de prédios. E foi nessa esquina que, parado, Jacy percebeu que não sabia o que fazer com o fato de não ter nada para fazer.

Subiu e enquanto mudava a roupa reparou num prédio em frente uma moça tocando acordeão sentada na cama do quarto. De saia, ela tocava, abria e fechada o acordeão e também as pernas. Sem calcinha.

Jacy vestiu uma bermuda larga, pegou o siamês no colo e subiu para o telhado da casa. Lá de cima, uma visão privilegiada. A moça tocava acordeão e ele acariciava o siamês com a mão esquerda enquanto que com a direita se masturbava vagarosamente, contemplando o abrir e fechar de pernas da vizinha. Sentiu o primeiro orgasmo e deitou-se para trás, lembrando, saudoso, de Carmelita. Deitado, arfando, descansou alguns minutos, ouvindo o som do acordeão. Lembrou de Madre Severa.

Ergueu-se e a moça continuava tocando. De novo Jacy passou a acariciar o siamês com a mão esquerda e com a direita se masturbava vagarosamente. O orgasmo demorou, o acordeão calou, mas ainda assim ele atingiu o êxtase, sempre pensando em Carmelita e Noviça Sênior Severa, deitando de costas no telhado para descansar. A moça do acordeão tinha sumido do quarto.

E assim, todos os dias naquele horário, sol ou chuva, o mesmo ritual: acordeom, telhado, pernas se abrindo e fechando, siamês, orgasmos, repouso. Nasceu um novo Jacy. Feliz. No entanto, aos domingos a moça do acordão não aparecia.

Um mês se passou e Jacy, com cinco quilos a menos, passou a correr 10 quilômetros todos os dias, alimentação saudável, devorava livros, virou cinéfilo. Em casa, seu bom humor agradou a todos, tios e primos, que nunca o viram tão alegre. “Deve estar apaixonado”, pensavam. Conversando com um amigo, jornaleiro da rua, perguntou e soube que a moça do acordeão estava noiva e por isso, aos domingos, sempre ia passar o dia no sítio da família do noivo em Cachoeiras de Macacu.

Percebeu que entrava em pânico toda vez que imaginava a moça casando e mudando dali para outro lugar. “O que será de mim?”, pensava.

Quando os pensamentos se tornavam compulsivos (especialmente aos domingos, quando ela não estava) ele procurava um drama mais forte, como, por exemplo, o DVD do filme “Lúcio Flávio, o passageiro da agonia” para amenizar a sua dor. Mas, com o passar do tempo, constatou que perto do sumiço da moça do acordão “Lúcio Flávio” parecia Sítio do Pica Pau Amarelo.

Após mais um mês de rituais bem sucedidos, Jacy chegou a conclusão que: 1 – não conseguia mais viver sem aquela moça do acordeão; 2 – ela sabia que ele estava lá porque, algumas vezes, seus olhares se cruzaram e ambos baixaram a cabeça; 3 – Ela assumiu o conluio porque não fechava a janela e sequer reclamou com alguém

Numa sex
ta-feira o jornaleiro procurou Jacy. “Olha, trago um bilhete para você. É da Janaína, a moça do acordeão. Jacy...desculpe...ela perguntou seu nome, eu disse e ela me entrou este envelope”.

Enquanto o jornaleiro falava, Jacy sentia uma estranha vertigem, sensação de desmaio, falta de ar, algo parecido com morte iminente. E por tudo que já havia lido, não tinha dúvidas: ele estava tendo um ataque de pânico. Assustado, o jornaleiro comentou “você está branco, senta aí”, puxou um banquinho. Jacy sentou, aspirando devagar pelo nariz e expirando devagar pela boca. Pediu um pouco d’água, garganta seca. O jornaleiro deu. Refeito, Jacy levantou e, com o envelope perfumado e fechado nas mãos foi para casa.

Deitou na cama e abriu o envelope. Num papel florido, apenas a frase: “Jacy, eu adoraria conhecê-lo pessoalmente. Tenha um bom dia. Beijos, Janaína do acordeão.

Jacy colocou o papel no envelope, sério. Olhou a janela e conseguiu avistar algumas nuvens entre os prédios altos. Minutos depois, devagar, levantou. Tomou um banho, pôs uma roupa leve, arrumou a mochila, incendiou o envelope com o bilhete, matou o siamês a facadas, saiu de casa e sumiu.

Aos tios e primos desolados, os policiais disseram que “ele pode estar em qualquer lugar entre os bordéis da Praça Mauá e o Vaticano. Supomos que tirou documentos falsos e caiu no mundo”.

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