A farsa dos e-mails

Estou vendo aqui que nos últimos dois anos mandei oito e-mails, fale conosco ou similares para órgãos públicos e empresas. Dos oito, respondeu somente um, mesmo assim de forma evasiva e com erros de português. Claro, não envio mais e-mail para CNPJ nenhum, nem fale conosco, nem opine aqui, nem posso ajudar?, nada disso. Voltei a usar o velho símio tecnológico, o telefone, porque do outro lado não dá para escapar. Você diz alô aqui, a pessoa tem que dizer alô lá. Se desligar na cara não adianta, ligamos de novo.

Uma pesquisa (americanos adoram pesquisas, eu também) feita, acho, pelo Gallup constatou esse índice de não resposta de e-mails corporativos por consumidores ou de “pessoas de fora do sistema”, o popular estranho no ninho. Motivo: vadiagem. Os caras travestiram as palavras com terminologia técnica, e tal, mas no final o diagnóstico foi esse: vadiagem, vagabundagem. Não respondem porque dá trabalho. Tem que abrir, dar reply, escrever....”ai que preguiça” (https://bit.ly/2VbWIOI)

Em um desses e-mails ingênuos que enviei, que muito lembram carta de corno estilo perdoa-me por me traíres, perguntei se um produto tinha modelo similar mesmo que “um pouco mais caro”. Não responderam. Em outro, sem resposta, perguntei porque eles não tinham representantes do relógio marca X no Brasil se comprei em uma loja credenciada, no Rio, logo, no Brasil. Não estou dando nomes ao gado porque isso pode dar processo judicial e está muito calor para ir a audiências.

Com relação aos órgãos públicos chega ser engraçado porque eu trato a minha pessoa (reverência, hein) como “contribuinte” e não cidadão e escrevo no máximo 15 linhas já imaginando que do outro lado quem vai abrir é um indolente inimigo pago por mim, que representa um estado (com e minúsculo) sonolento bancado também por mim, que provavelmente vai fingir que não viu o e-mail e vai passar a bomba para outro, que vai passar para outro, outro, outro até a lixeira final. É assim o estado (com e minúsculo) brasileiro.

No caso das empresas privadas não reagi, apenas nunca mais toquei no assunto, mas quanto aos órgãos públicos reagi. Mandei um segundo e-mail para cada repartição dirigido ao “Exmo Senhor Escroto” com 15 linhas de chutes na cara que fazem estado islâmico parecer festa junina em Campina Grande (Deus me livre, aliás).

Não sei se esse fenômeno acontece com outras pessoas (a pesquisa americana diz que sim), mas é tudo culpa nossa. Somos muito cordiais, antagônicos ao real conceito de homem cordial de Sergio Buarque de Holanda ( https://bit.ly/2Gs6zb0). Temos educação, humildade, damos bom dia, pedimos por favor, cedemos a vez, deixamos a dama passar na frente (mesmo que seja para contemplar a lombada), não falamos de boca cheia, enfim, parecemos Príncipe Danilo I do Montenegro lutando na lama com um porco.

Conheço um sujeito catastrofista, daqueles que quando entra em avião todo mundo desembarca, que acha que o fim da internet no terceiro mundo vai ser justamente a “descomunicação dos vadios”. Ele diz que o calor das Américas de baixo, da África, do Sudeste Asiático (ele é radical) provoca indolência, falta de respeito, a vadiagem, e que o sangue latino, tão cantado em prosa e verso, é pura cachaça de quinta. “Frances bota colete amarelo e vai brigar com a polícia para não ter que trabalhar. Espanhol não está em greve, espanhol é em greve”, ele teoriza sem aliviar, é claro, o lado da América do Sul. “Argentino passa os dias tocando bumbo na Praça de Mayo e gritando volta Perón”, no Brasil é “Lula Livre”, tudo desculpa para não trabalhar.

A tese dele de que “a internet no terceiro mundo vai acabar porque dá muito trabalho”, que cheguei a ridicularizar, acabou ganhando sentido após a minha péssima experiência com os e-mails corporativos.

Supondo que além de mim milhares de pessoas tenham dado com a cara na porta mandando e-mails sem resposta, e por isso desistiram da comunicação pela web, significa que mais pessoas estão retomando a comunicação dita arcaica do “alô, alô” e, em breve, e-mails, fale conosco, whatsapp e o escambau vão cair em desuso literal.

“E-mail não tem A.R.” lembra Afonso Luis Mendes Moura, aposentado, ex-gerente de operações dos Correios por décadas. “O A.R., Aviso de Recebimento, foi um verdadeiro ´mata vagabundo` porque obriga a pessoa a se manifestar. Já e-mail não tem isso, é fácil se livrar dele, fingir que não recebeu, “que o sistema ficou lento”, que “o sistema caiu” porque a culpa sempre será desse sistema que na verdade é o alter ego da vadiagem.

Um dia achei que o e-mail era a minha comunicação ideal. Ontem eu fiz menção a minha tese de mestrado que foi sobre a força do jornalismo de bairro e o estímulo que ele dá a comunicação entre leitores, jornalistas, vizinhos.

Lembro que escrevi na tese que para mim o ideal seria falar pouco e escrever muito porque: quando você escreve e manda não é interrompido, o raciocínio sai inteiro, redondo; não é mal interpretado porque vale o escrito; a precisão é de 100%.

Foi pena não ter concluído a tese e muito menos o mestrado por falta de tempo e saco (nessa ordem), mas acho que daria uma história boa. Na época o jornalismo de bairro estava na moda, havia dezenas de jornaizinhos no Rio, em Niterói, em São Paulo.

Bom, escrevi demais. Começo a concordar que o fim da comunicação via internet será pela desmoralização da própria pelos usuários, cansados de chutar na trave.


Procede?

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