Quem foi Raul Seixas? Ou melhor, quem é Raul Seixas? Dois livros biográficos caçam a resposta


Raul Seixas foi um grande compositor, poeta, um dos artistas mais completos e complexos de sua geração. Sua obra se perpetua porque se renova em uma metamorfose permanente, crônica.

Mas quem foi Raul. Ou melhor, quem é Raul? Neste ensaio para a magistral, fundamental e cada vez melhor revista Quatro Cinco Um, (https://www.quatrocincoum.com.br/br/home)   Carlos Macedo escreve que “Dois livros recuperam o impacto das canções e a trajetória de Raul Seixas, um dos maiores mitos do rock nacional”.

Raso, largo, profundo. A mosca da sopa, os olhos do cego, o dente do tubarão. Os versos de Paulo Coelho interpretados por Raul Seixas em um de seus maiores sucessos, “Gita”, trazem definições que também se aplicam às virtudes e contradições do dono da voz. Nenhum desses aspectos é negligenciado nas mais recentes biografias do roqueiro baiano: Raul Seixas — por trás das canções, de Carlos Minuano (BestSeller), e Raul Seixas: não diga que a canção está perdida (Todavia), de Jotabê Me deiros. Unidos pela fluência narrativa, os livros escritos pelos dois jornalistas ajudam a compreender o fascínio que Raul ainda provoca nos fãs, três décadas depois de sua morte.

Autor do perfil biográfico Belchior: apenas um rapaz latino-americano — lançado também pela Todavia em 2017 —, Jotabê Medeiros apresenta mergulho de maior fôlego em Raul Seixas: não diga que a canção está perdida. A começar pelas 416 páginas, quase 170 a mais do que a biografia do cantor cearense. O trabalho mais extenso repete uma das grandes virtudes de Belchior: a capacidade de aliar análise e informação.

Paraibano radicado em São Paulo, Jotabê Medeiros assume a primeira pessoa apenas na introdução do livro: “Mergulhei na trajetória de Raul e sua posterior assimilação pelos jogos do êxito e da permanência”. Mas a narrativa biográfica ganha identidade própria também quando o autor se permite saborosas transgressões, como recorrer a termos contemporâneos (memes, por exemplo) para contextualizar episódios do passado ou tecer comparações inusitadas — e divertidas. Na biografia de Jotabê, o ainda imberbe Raul dança em Salvador como se fosse uma junção de Elvis Presley com Jerry Lee Lewis, saracoteando “feito um esquilo num fio desencapado”. O sorriso é inevitável.

Além da verve da narrativa, outro ponto de destaque no trabalho de Jotabê é o cuidadoso entrelaçamento da história de Raul com a trajetória de músicos que não alcançaram consagração idêntica à do biografado. Antes de analisar, em minúcias, cada faixa da ópera-rock Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das 10, lançada em 1971, ele traça perfis dos outros integrantes do projeto: Sérgio Sampaio, Miriam Batucada, Edy Star. E justifica sua opção de detalhamento com uma certeza: “Em toda a sua carreira dali por diante, Raul nunca mais iria tão longe num trabalho experimental nem forjaria um trabalho conceitual tão orgânico”.

Jotabê também joga luz em ações decisivas para impulsionar a carreira do baiano conduzidas por nomes como Jerry Adriani, Leno (da dupla Leno e Lilian) e, claro, Paulo Coelho. Um dos primeiros encontros de Raul nos anos 1970 com o autor de O alquimista, então com 24 anos e “imerso em um mundo de excentricidades esotéricas”, é reconstituído por Jotabê, que tem o cuidado de citar passagem da biografia O mago, de Fernando Morais — lançada pela Planeta, em 2008 —, para Incluir a versão de Coelho, um pouco diferente da que aparece em Raul Seixas: não diga que a canção está perdida.

O processo de “customização cabocla” das ideias do ocultista inglês Aleister Crowley, e que desembocou no hino “Sociedade Alternativa” (cantado no Brasil por Bruce Springsteen no ano de 2013, em São Paulo), ganha explicação detalhada na biografia.

Brega

Em estudos do que o roqueiro baiano chamava de “maleabilidade musical” e que o fazia trafegar com desenvoltura por diversos estilos, a composição de sucessos românticos quase sempre é ofuscada pela voltada a temas místicos. Em Eu não sou cachorro, não — música popular cafona e ditadura militar (Record, 2002), Paulo Cesar de Araújo afirmou: “Embora seus biógrafos evitem realçar este fato, o ‘maluco beleza’ não pode ser expulso da história da música popular ‘cafona’”. O jornalista e historiador lembra as parcerias (“sem quaisquer referências a sociedades alternativas, metamorfoses ambulantes ou discos voadores”) de Raulzito com Mauro Motta (ex-Renato e Seus Blue Caps), que também são esmiuçadas por Jotabê Medeiros.

A composição de sucessos românticos quase sempre é ofuscada pela voltada a temas místicos

“Foi você”, uma das canções açucaradas que a dupla escreveu no início dos anos 1970, contém versos (“Foi você/ A causa, o meio e o fim/ Do nosso amor”) que, retrabalhados, seriam eternizados no desfecho apoteótico de “Gita” e no título do documentário dirigido em 2012 por Walter Carvalho. O início, o fim, o meio. “Quando eu digo que sou a luz das estrelas, não estou falando de mim. O pedreiro lá da frente de casa que está construindo um edifício canta essa música como se fosse ele. Isso porque nós somos o verbo ser”, afirmou o intérprete, em entrevista resgatada por Jotabê Medeiros.

Explicações para as letras gravadas pelo artista baiano são um dos principais atrativos de Raul Seixas — Por trás
das canções. Como o próprio título indica, o jornalista Carlos Minuano decide focar seu biografado por meio da produção artística. E o ponto de partida foi um motivo que o próprio autor define como “singular”: a audição de “Ê meu pai” (parceria de Raul com Cláudio Roberto) no encerramento de uma cerimônia com a bebida ayahuasca em um sítio no interior paulista. “A música, que eu já conhecia, me tocou de maneira diferente. Atingiu aquele lugar indistinto e incerto entre o estômago e a alma. E me pôs a pensar como essa música teria sido criada”, revela o jornalista, também autor de Tons de Clô, biografia do estilista Clodovil Hernandez, lançada pela editora BestSeller em 2017.

Ainda na apresentação, Minuano avisa que seu livro não pretende fazer um estudo crítico da obra enfocada. O propósito é mais “um passeio, uma viagem musical pelo cancioneiro raul-seixístico e através dele navegar também pela grande aventura que foi sua vida”. Em capítulos curtos, com parágrafos que jamais ultrapassam três frases, Raul Seixas — por trás das canções oferece a oportunidade de uma leitura ligeira, facilitada pelo uso de um atraente material iconográfico.

Uma edição mais rigorosa evitaria a repetição de informações (o fato de Raul não gostar de maconha é citado na segunda parte do livro como se não houvesse uma referência anterior, no capítulo cinco), o uso excessivo de frases com as conjugações do verbo ser (“foi” e “foram” pululam nas páginas) e cochilos de revisão, como as grafias diferentes no mesmo capítulo para o sobrenome de um amigo argentino do cantor, Oscar Rasmussen. Os deslizes, facilmente corrigíveis em novas edições, certamente serão perdoados pelos fãs diante da profusão de manuscritos reproduzidos e de um capítulo em especial, intitulado “Faroeste amazônico”, que reconstitui, com muitas fotos e informações, o périplo alucinado e acidentado do roqueiro em garimpos paraenses na fase final de sua carreira. 

Eclipse

O epílogo de Raul, por sinal, é revestido de melancolia. Quem o viu nos derradeiros shows com o conterrâneo Marcelo Nova — como a fotógrafa Norma Albano — teve a impressão de que Raul parecia estar se dissipando, “sem energia, em espírito de despedida”. Nas palavras de Jotabê Medeiros, o cantor se torna “réquiem de si mesmo” até a parada cardíaca que sofreu, em 21 de agosto de 1989, aos 44 anos, em São Paulo. “A sensação era que findava ali uma espécie de reality show angustiante, um show aberto da vida de um homem que conquistara o país com um misto de franqueza, talento, indignação permanente e picardia de menino”, compara Jotabê.

O biógrafo faz questão de lembrar que a morte do cantor baiano, decorrente de pancreatite crônica e hipoglicemia, ocorreu cinco dias depois do maior eclipse lunar do século 20, “o que parecia confirmar, para uma legião de admiradores e seguidores, todos os presságios, premonições e profecias de sua trajetória, como aquela que ele eternizou na letra de ‘As aventuras de Raul Seixas na cidade de Thor’, do disco Gita: ‘Quando eu compus, fiz ‘Ouro de tolo’/ Uns imbecis me chamaram de profeta do apocalipse/ Mas eles só vão entender o que eu falei/ No esperado dia do eclipse.’”

Depois de sustentar sua versão para a origem do grito ‘Toca Raul!’, Jotabê Medeiros arrisca hipóteses para a perenidade da obra do cantor
Depois de sustentar sua versão para a origem do grito “Toca Raul!”, onipresente em shows em todo o país, Jotabê Medeiros arrisca hipóteses para a perenidade da obra do cantor. O autor destaca no biografado “a visão aguda sobre a panaceia social brasileira que ia além da experiência ordinária”. E inclui Raul entre os gigantes da música nacional pelo fato de conseguir “um tipo de sequestro da razão, a capacidade de tirar o ouvinte de seu estado de autocontrole e oferecer a ele uma outra porta para a percepção, para a libertação”. Carlos Minuano é mais sucinto: “Para os fãs ficou a saudade do Maluco Beleza, mas também seu principal legado: um cancioneiro tão imenso quanto rico”.

“A história fora do mito não tem sentido algum; ao contrário, o mito só nos toca quando se confronta com a história”, sentencia o crítico norte-americano Greil Marcus, citado por Sebastian Danchin em Elvis Presley e a revolução do rock (Agir), lançado em 2010 no Brasil. “A força do mito está aí para nos manter atentos a esse papel histórico”, complementa Danchin, autor de uma das biografias mais acuradas de Elvis Presley. As máximas se aplicam também a Raul Seixas: não diga que a canção está perdida e Raul Seixas — por trás das canções. Ao revisitarem a história atrás do mito, Jotabê e Minuano chegam à mesma conclusão, ainda que por diferentes caminhos. Raul Seixas não foi. Metamorfose permanente, Raul Seixas ainda é.

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