O seu dia
Foi num dia chuvoso que fomos a Divino, em Minas Gerais, para
você visitar um amigo desde os tempos de escola que estava adoentado. Um
italiano cosmopolita, culto, espirituoso que se apaixonou por uma mulher
daquela região. Não voltou para a Itália.
Saímos cedo, ainda noite, cinco e meia da manhã para rodarmos
quase 800 quilômetros de ida e volta. Você só queria dar um abraço no amigo e
voltar.
Paramos no Alemão, Rio-Petrópolis e comemos bem. Você estava
alegre, eu também. Fazíamos muito bem um ao outro desde que o vi e você me viu
no berçário da maternidade.
No caixa, antes de voltarmos para a estrada, você comprou uma
embalagem com seis bombons Sonhos de Valsa que ambos devoramos pelo caminho.
Estrada sinuosa sob a chuva fina e, apesar de ir visitar o amigo
não escondia o orgulho de estar me levando para, enfim, ir conhecer a sua
pequena torrefação de café, lá em Divino, cujo amigo italiano gerenciava.
Chegamos na cidade e fomos direto para a casa dele. A esposa
nos recebeu emocionada, nos convidou para entrar, serviu café e informou que o
seu amigo estava internado num hospital em Carangola, ali perto.
Fomos para lá. O sorriso desapareceu dos seus lábios e dos
meus. Não foi uma boa notícia. Ele não estava pouco adoentado.
Chegamos no hospital, subimos um andar e, num quarto grande,
o seu amigo estava em coma. Ainda assim eu presenciei o seu abraço e o seu
chamado. Chamou o nome dele várias vezes, num esforço sobre humano para
trazê-lo de volta à tona. Não adiantou.
Poucas vezes na vida presenciei uma cena de afeto tão
profunda, apesar das circunstâncias. E pela primeira vez eu vi uma lágrima
quase seca desprender de seu olho direito, enquanto chamava, chamava, chamava o
nome do amigo.
Almoçamos pouco e voltamos. Você sempre sabia das coisas e
não falava. Na estrada de volta, algumas palavras, suas e minhas, sobre a vida
e seus valores e futilidades. Você sabia, mas não disse, que a sua visita foi
de despedida. Sabia, mas não disse, que aquele amigo estava quase te levando ao
choro compulsivo, e provavelmente o levou em outro lugar, outro momento,
solitário, em algum acostamento da vida.
No dia seguinte chegou a notícia de que ele havia nos deixado.
Muita gente que acha que o conhecia não souberam navegar em
seu enorme oceano de emoções. Eu soube. Mais ou menos o que uma vez, no seu
aniversário, escrevi num cartão preso a seu presente, usando o título de um
livro de Rubem Fonseca: “Vivencie plenamente suas vastas emoções e pensamentos
imperfeitos”.
Escrevi esse bilhete aqui porque hoje é dia 21 de junho.
Jamais esquecerei de cada segundo seu.
Desde 1955.
Feliz aniversário!
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