Um lisérgico lapso de lucidez do Rio

                                                               João Gilberto e Tom Jobim


"No dia em que reescreverem a Constituição, um dos novos artigos dirá: Todo brasileiro tem direito a um cantinho e um violão. Tem direito também a cidades saudáveis, matas verdes, céu azul, mar limpo e seis meses de verão". (Ruy Castro).

Em tempos de cólera faz bem a alma ler "A onda que se ergueu no mar", um livro antigo do Ruy Castro (é de 2001), um verdadeiro poema para o Rio de Janeiro que que foi devorado pela insensatez.

A personagem principal dessa obra é a bossa nova, movimentação cultural que surgiu numa fase do Brasil encravada entre o suplício representado pela era varguista, a boçalidade janista, o baixo astral apático do janguismo e o golpe de 1964.

Coisa linda era o Rio nos anos 1950, início de 60. Coisa maravilhosa era a bossa nova, capaz de ver mais beleza onde já havia beleza, a contemplação dos olhos verdes da morena e seu biquíni "ousado" em 1960, que hoje daria para fazer um paraquedas.

A bossa nova acabou porque seu muso era o Rio. E o Rio cidade maravilhosa, sol, céu, sul, faliu nos anos 70. Virou um amontoado disforme, portador de anemia cultural grave.

A bossa nova murchou porque seu o muso, aquele Rio de Janeiro, deixou de existir. Aquele Rio de Janeiro foi um lapso de lucidez, como uma onda lisérgica.

A demolição começou com as casas baixas, as árvores, as praças. A mesma boçalidade que destruiu Copacabana (autopsiada por Rubem Braga em “Ai de ti, Copacabana”) avançou gananciosa e voraz sobre Ipanema, que só não virou chorume porque um milagroso raio de civilidade inundou e incendiou parte da sociedade civil.


Minha relação com o Rio daqueles tempos ipanemenses é tão comocional que numa noite, lendo o livro, uma furtiva lágrima escorreu do olho esquerdo. Emoção vadia. Bateu saudade de meu tio Evaldo, irmão de minha mãe, que também era enfronhado entre os bossanovistas e mais tarde tropicalistas.

Tio Evaldo era pura vanguarda, pura arte, puro bom gosto e quando ia lá em casa eu o enchia de perguntas. Sim, foi ele quem me "aplicou" de bossa nova.

Quando conheci meu padrinho de estúdio*, Roberto Menescal, em 1984, chutei os protocolos e pedi: 1 - um autógrafo; 2 - que um dia fôssemos ao Veloso (bar) e, lá, tirássemos uma foto abraçados.

Queria ter comigo a lembrança de um dos pais da bossa no bar-berço da bossa nova. Um dia fomos, hora do almoço, o garçom tirou a foto na mesa onde Vinícius, Tom e Menescal costumavam sentar. A foto ficou linda, linda, mas na famigerada mudança (lambança) de endereço que fiz ela se perdeu. Mas, não quero embaçar o astral, falar da bela foto perdida e da mudança que não quis fazer. Há muito o que falar do Menescal. Muito. Hoje, no jornal A Tribuna, que está nas bancas, minha coluna  sobre o livro biográfico dele, “Roberto Menescal – um arquiteto musical”. Confira em www.atribunarj.com.br

Sobre "A onda que ergueu no mar", aqui vai um texto da editora Companhia das Letras:

"As andanças de Tom Jobim pelo mundo; o longo verão de Brigitte Bardot em Búzios; a trágica história de Orlando Silva; as vidas paralelas de Dick Farney e Lucio Alves; céus e mares de Johnny Alf e João Donato; samba e swing no Beco das Garrafas; com Nara Leão em Copacabana; ao redor do pijama de João Gilberto - em A onda que se ergueu no mar,

Ruy Castro conta novas histórias da música que voltou para conquistar uma nova geração.
Hoje ela talvez seja mais ouvida do que em 1961, em salas de concerto, teatros, boates, bares, clubes, escolas, estádios, sem esquecer os elevadores e as salas de espera, os comerciais e as trilhas de filmes e novelas. Em discos também: nunca se ouviu tanta Bossa Nova em São Paulo, Nova York, Paris, Sydney, Tóquio. E quem se dispuser a entrar em todos os sites brasileiros e internacionais dedicados à Bossa Nova, arrisca-se a morrer de velhice antes de sequer arranhar a superfície.

Com Chega de saudade, de 1990, Ruy Castro foi um dos responsáveis por essa volta. Mas ali a história se encerrava por volta de 1970, quando a Bossa Nova foi dada como morta.

Ruy mergulhou de novo no assunto - mas agora para falar da volta de uma música que, como as ondas, só esperava o momento de dar de novo à praia."

* Padrinho de estúdio é a pessoa que apresenta um estúdio de gravação a um produtor de primeira viagem. Quando dirigiu a gravadora Polygram (hoje Universal), Menescal contratou Celso Blues Boy por meu intermédio, mas colocou uma condição: que eu produzisse o disco. Eu disse que nunca tinha produzido um disco e Menescal (otimista visceral) mandou "ora, você tira de letra, nasceu em rádio". Topei. Ele me levou ao monumental estúdio Um da Polygram (24 canais em 1984), olhou para o engenheiro, técnicos e disse "esse é o Luiz Antonio Mello que vai produzir o Celso Blues Boy". E foi embora! Segurando as gargalhadas. Querem saber? Ele fez bem. Aprendi produção fonográfica fazendo e me orgulho muito de "Som na Guitarra", álbum de estreia do Blues Boy.

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