MEMÓRIAS DO "SEXTO BEATLE"
Geoff Emerick foi um inglês de 72, que desde os 16 anos, trabalhou
como assistente de engenharia de som nos estúdios Abbey Road. Ao lado de George
Martin, o quinto Beatle, ele gravou a banda do parto até a pá de cal. Em
“Revolver” passou a braço direito de Martin como engenheiro de som e foi
promovido a sexto Beatle.
Semanas depois de fazer palestras e workshops em Porto
Alegre, Emerick morreu de ataque cardíaco em outubro de 2018, em Los Angeles
Seu despretensioso livro “Here, There and Everywhere – Minha
vida gravando os Beatles”, lançado recentemente no Brasil e totalmente esgotado
(só dá para ler em e-book da Amazon), é um valioso testemunho de um homem que viu
e ouviu tudo. Literalmente.
Com o fim do grupo, em 1970, ele fez a engenharia de som para
álbuns antológicos como “Band of the Run”, do Wings (as gravações na caótica,
árida e infernalmente quente Lagos, na Nigéria, foram impressionantes), mas
trabalhou também com Elvis Costello, Supertramp, Bad Finger, Cheap Trick,
Nazareth, Chris Bell, Split Enz, Trevor Rabin, Nick Heyward, Big Country,
Gentle Giant, Mahavishnu Orchestra, Ultravox, Matthew Fisher, Kate Bush, Jeff
Beck e outros.
Lógico que os pesquisadores de Beatles e beatlemaníacos em
geral já sabem de tudo, mas Geoff conta, por exemplo, que os Beatles tinham
nojo, ódio, horror dos cultuados estúdios Abbey Road, segundo ele gigantescos
caixotes com luz industrial, fedendo a mofo, desconfortáveis, tecnicamente
ultrapassados e de um baixo astral generalizado.
Sua dona, a EMI (fechou nos anos 2000), era um paquiderme
muito parecido com as empresas estatais brasileiras. Cheia de regras, normas,
regulamentos, mas andava se arrastando. O ódio dos Beatles foi tanto que sempre
que podiam eles iam gravar no Trident ou no Olympic. O autor do livro diz que
Abbey Road simboliza a pancadaria entre os quatro Beatles.
Por exemplo, o álbum “Abbey Road” ia se chamar “Everest”, mas
o custo de levar a banda até o monte para fazer as fotos de capa e divulgação
tornou o nome inviável. Foi quando Ringo Starr sugeriu algo do tipo “bota o
nome disso aqui mesmo”, e nasceu o título Abbey Road.
A sessão de fotos para a capa, ícone da cultura pop, durou 20
minutos. Como os músicos mal se falavam (Paul e George estavam a beira da troca
de granadas) fizeram a foto ali mesmo, na rua. O fotógrafo Ian Macmillan foi
chamado e eles saíram numa manhã de sol. Muito simples. Aliás, o livro mostra
que era tudo muito simples.
Desde as primeiras gravações a relação entre Paul e George
não era boa. Geoff conta que o guitarrista não sabia tocar direito e, por isso,
Paul o substituiu em vários momentos. George ficou tão infeliz que passou a ser
o último a chegar e primeiro a ir embora das gravações.
Ele praticamente não participou de “Sgt. Pepper”. A tal ponto
que quando terminaram a exaustiva gravação de “A Day in the Life”, no dia
seguinte Lennon disse para Harrison “parabéns, George. você perdeu a gravação
de nossa melhor música”.
O autor do livro diz que George viu nos instrumentos indianos
uma fuga, uma forma de desenvolver o seu gigantesco talento, mas reconhece que
a partir do “Álbum Branco” ele amadureceu, evoluiu e se tornou um dos grandes
guitarristas do mundo, mestre da slide
guitar.
Por falar em “Album Branco”, o que não falta é bizarrice.
Para não se verem, os Beatles gravaram em três estúdios da Abbey Road, cada um
em um. Ringo ficava alternando. Poucas semanas antes, John e Yoko sofreram um
grave acidente de carro na Escócia e quando chegou, o casal quis colocar a
carcaça do carro destruído em frente a sua casa como uma escultura.
Geoff Emerick lembra que numa tarde, vários homens de macacão
apareceram no estúdio um, onde os Beatles gravavam o “Álbum Branco”. Ninguém
entendeu quando os homens transportaram um grande objeto embrulhado que acharam
ser um piano. No uniforme deles constava a logomarca da 'Harrods', uma das
maiores lojas de departamento do mundo onde se encontra de tudo, de picanha
fatiada a calota de Kombi. Os homens desembrulharam uma...cama. Cama para Yoko
Ono repousar por causa do acidente, colocada no estúdio. Como não desgrudava de
John (Geoff conta que iam até ao banheiro juntos), ela recebia amigos de um
lado enquanto os Beatles tentavam gravar do outro. O tormento Yoko Ono tem
dezenas de episódios inacreditáveis.
Lennon estava viciado em heroína na fase “Álbum Branco”.
Tanto que depois da gravação foi se tratar e compôs “Cold Turkey”, apelido das
crises de abstinência sem a heroína:
“(...) A
febre é alta
Não
consigo ver nenhum futuro
Não
consigo ver nenhum céu
(...) Eu
queria estar morto
(...)
Meu corpo está doendo
(...)
Não consigo ver corpo algum
(...) Me
deixe em paz
(...)
Meus olhos estão abertos
(...)
Não consigo dormir
(...)
Trinta e seis horas
Rolando
de dor
Rezando
para alguém
Me
liberte novamente
(...)
Oh, eu serei um bom garoto
Por
favor, me faça bem
Prometo-lhe
qualquer coisa
Me tire
deste inferno
No meio das gravações do “Álbum Branco”, diante de tanto
azedume, baixarias e falta de respeito entre os Beatles, Geoff Emerick se
demitiu do disco. O único que foi tentar demovê-lo foi John, que quase
implorou, falando da importância do engenheiro para a banda desde o início,
etc.
George Martin também tentou argumentar, mas não adiantou. Era
uma quarta-feira e ele foi pescar. Só retornou a EMI na segunda feira para
trabalhar com outros artistas. Muitos meses depois para salvar “Let it Be” e
gravar “Abbey Road”. De vez em quando era chamado para resolver algum problema
nas gravações de “Yellow Submarine”.
“Let it Be”. A EMI contratou Glyn Johns para produzir algumas
faixas, mas não gostaram e ele foi demitido. George Martin, cada vez mais
acuado, cansou de tentar apagar os incêndios. Foram gravar no estúdio Trident e
semanas depois, quando ouviram as gravações em Abbey Road o som estava péssimo.
Um desesperado Paul McCartney caçou Geoff Emerick que disse que muita coisa
teria que ser refeita. Chamaram Phil Spector que tentou, tentou mas acabou engavetando
“Let it Be”. Partiram para a gravação de “Abbey Road”, mas já sem Lennon. Geoff
voltou a engenharia de som e salvou “Let it Be”, que acabou saindo antes de
Abbey Road.
O livro traz, também, muitas informações técnicas importantes.
Por exemplo, antes de começar a gravar “Revolver” Geoff sugeriu que Paul McCarteney substituíssem seu
baixo alemão Hofner, aquele com formato de violino, por um Rickenbacker, bem
mais potente. Macca adorou e passou a usar o Backer nas gravações a partir
dali. Ele diz que o empenho quase neurótico de Paul McCartney e o som do
Rickenbacker fizeram com que os Beatles tivessem o melhor som de baixo em
gravações de discos de rock.
O jornalismo chama de fonte primária pessoas que vivenciaram
fatos. A história de Geoff Emerick é importante para quem gosta, conhece e até
é fanático pelos Beatles. Um livro que testemunha a intimidade da banda genial
que ajudou a mudar a história do Século 20.
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