O obsoleto planeta dos reaças

                           
                                                      

                                          Olho.
Acabei de sair de uma fila. Banco. Duas mulheres conversavam animada/desanimadamente sobre seus celulares. Uma, calça jeans, dorso retilíneo, bem interessante, dizia que o seu aparelho era um iPhone 3. A outra, mais para adiposa, mas também gostosa, ostentava um iPhone 4. Eu segurava, apenas, uma quase alérgica curiosidade empunhando meu Nokia C2 ano 2012, pequeno, barato e notável, mas já ultrapassado segundo o  mundo cão.

Ia me enfiar entre as duas. Participar da conversa. Dizer o que penso de modelo Y ser mais isso do que modelo X que é mais aquilo que o modelo Z, mas bateu preguiça. Vai que me enfio ali e as duas acham que é assédio, o que, muito entre nós aqui nessa nova cabana, não seria assédio não. Seria o velho e bom tesão.com.br.

Um amigo, gigaintelectual, tem um Fusca 1982 na garagem de seu prédio, no Leblon. Ele me disse uma vez que o melhor carro do mundo é o táxi. Concordei. Quando vivia em Paris, anos 70 , ele tinha um Citroen 2 CV, xodó dos existencialistas. Foi ele quem me apresentou a Oscar Niemeyer na célebre tarde em que o mestre da arquitetura decidiu almoçar num restaurante no Flamengo, Rio.

Meu amigo estava na equipe que fez Brasília com Oscar e Lúcio Costa, mas nem por isso abre mão do jeans, dos óculos tartaruga, da eterna aparência sarada de 70 e varada anos de idade (acho que ele desligou seu taxímetro) e de Sartre, de quem também foi amigo.

Esses caras me mostram que esse papo de mundo obsoleto, obsoleto mundo é e sempre foi uma babaquice, mas lamentavelmente funciona ou a senha “se liga, se liga freguesia, celular é nas Casas Bahia” não teria se eternizado. Em 1976 eu estava no MAM, Rio, no velório de Di Cavalcanti. Cobertura para a Rádio JB AM.

De repente entra Glauber Rocha. Descabelado, com um outro cara com uma câmera Bolex de 16 mm. Maior escândalo. Glauber gritava “close na cara do defunto! Close na cara do defunto” e o cinegrafista praticamente trepava no caixão para arrancar o close da cara do Di Cavalcanti. As fotos de Ronald Theobald contam 60% dessa história.

Claro, fui falar com o Glauber que eu conhecia não sei de onde. Aos berros, olho pra mim e vociferou “esse aí....o Di... nunca pintou modelinho de revista. Esse aí...o Di, nunca acreditou em arte obsoleta como a minha. Não é isso que falam de mim...hein?!?!”, me perguntou, olhos arregalados. Nada respondi porque ainda não tinha chegado a uma conclusão sobre “Terra em Transe” e “Deus e o Diabo na terra do Sol” que assisti, sem camisa no Cinema Um na Prado Junior (Copacabana) que fez um Festival Glauber em 1975, por aí. Para não variar o ar condicionado do cinema estava pifado, para não variar a maioria dos homens estava sem camisa, e para não variar uns cinco ou seis estavam só de cueca, um hábito totalmente glauberiano que virou norma naquela sauna. 

No festival Bergman, e no Truffaut e no Cacá, o traje cueca começava a se transformar em maioria naquele templo do novo cinema na Pradão, rua de belas putas populares. Um dia, um homem que se dizia dono do Cinema, de terno, gravata e advogado a tira colo, entrou, mandou acender as luzes do cinema e expulsar os seminus. Ninguém saiu, as luzes apagaram e a sessão continuou. Enterraram o assunto. O cara sumiu. O advogado também.

O consumismo nasceu obsoleto porque já carecia de um novo modelo para faturar. O sujeito compra um carro, paga 70 mil, fica todo satisfeito e no semestre seguinte mudam o farol, as lanternas e o câmbio. É trocar ou perder 80% na desvalorização. Em semanas seu “último tipo” passa a condição de ultrapassado. Incomodado, o ex-feliz proprietário arranca sangue das vísceras e troca (perdendo um dinheirão) o “velho” por um novo que, seis meses depois sai de linha para dar lugar a um outro modelo. E por aí vai. Ladeira acima? Ladeira abaixo? Não sei. Não sou economista e muito menos veterinário para entender os pitís (não tem acento agudo no i) da sociedade emergente crônica.

Quando Lula era o estadista do Brasil e começou aquela conversa sobre compra de aviões de caça, o “muso” era o F-18. O Brasil comprou o Gripen, puro sangue da Suécia, "ilha" eterna e maravilhosamente pornô. Os americanos matavam com AR-15, mas os russos ensinaram a fazer fuzis maiores lançando o ultra fashion AK-47 que tem um jeitão meio vintage. Dêem uma olhada nele, atrás do inexistente Bin Laden. O AK é um fuzil autoral.

Segundo a Wikipidea foi inventado em 1942 por Mikhail Kalashnikov que morreu um dia desses, um jovem sargento das forças blindadas soviéticas que levou um balaço em 1942 e, no estaleiro, inventou o AK, arma de grife que os traficantes do Rio cultuam como a um disco de Belo, ícone do pagode e do narcotráfico consentido. Lembram que Belo foi preso dentro de um armário, em casa, cheio de armas e drogas anos atrás? Que fim levou essa ocorrência policial? Tornou-se obsoleta?

Enfim, é preciso estar muito atento e forte para não ceder a ditadura nada branda dos reaças que apregoam o estado obsoleto de ser. Até implantes dentários entraram nessa porque, dizem, o parafuso de titânio é melhor do que a coroa de ouro, li numa revista de inutilidades na antesala do meu dentista.


Será que um dia haverá homens e mulheres com a validade vencida? Por falar nisso, sabem o que um médico amigo me disse? Que os laboratórios estão reduzindo de propósito a vida útil dos remédios para que a validade vença logo e o consumidor tenha que comprar o modelito em voga, já que não existe antibiótico vintage. Mais: ele me disse que muitos remédios vem com 28 comprimidos porque os laboratórios sabem que o médico vai prescrever para 30 dias e o infeliz do consumidor, no comprimido número 28, terá que comprar outra caixa. É dose? Não, não é. Era.

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