Morre o engenheiro de som dos Beatles, do primeiro ao último disco
Fiquei chocado com a morte do célebre engenheiro de som
dos Beatles, o inglês Geoff Emerick. Ele teve um ataque cardíaco aos 72 anos poucos
meses depois de ter participado de importantes workshops sobre música, Beatles e
mercado de discos na nossa Porto Alegre, em junho.
Emerick começou a trabalhar como engenheiro assistente na
Abbey Road, onde ficam os Estúdios EMI, com apenas 15 anos. Apenas alguns meses
depois começou a trabalhar diretamente com os Beatles. Foi responsável por
gravações pioneiras da banda como “Love Me Do”, “I Want To Hold Your Hand”,
“She Loves You” e “A Hard Day's Night”. Mais tarde, tornou-se engenheiro-chefe
do grupo, e dirigiu "Revolver", “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club
Band,” "The White Album", "Abbey Road", além de "Penny
Lane" e "Strawberry Fields Forever".
Seu despretensioso livro “Here, There and Everywhere –
Minha vida gravando os Beatles”, lançado recentemente no Brasil, é um valioso
testemunho de um homem que trabalhou em todas as gravações da maior banda da
história do rock e viu e ouviu de tudo.
Com o fim do grupo, em 1970, ele fez a engenharia de som de
álbuns antológicos como “Band of the Run”, do Wings (gravações na caótica,
árida e infernalmente quente Lagos, na Nigéria, foram impressionantes), mas
trabalhou também com Elvis
Costello, Supertramp,
Bad Finger, Cheap
Trick, Nazareth, Chris
Bell, Split
Enz, Trevor
Rabin, Nick
Heyward, Big
Country, Gentle
Giant, Mahavishnu
Orchestra, Ultravox, Matthew Fisher, Kate Bush, Jeff Beck e
outros.
Com os Beatles: Sgt. Pepper's
Lógico que os pesquisadores de Beatles e fãs em geral já
sabem de tudo, mas Geoff conta, por exemplo, que os Beatles tinham nojo, ódio,
horror dos cultuados estúdios Abbey Road, segundo ele gigantescos caixotes com
luz industrial, cheiro de mofo, desconfortáveis, tecnicamente ultrapassados e
de um baixo astral generalizado. Sua dona, a EMI, era um paquiderme muito
parecido com as empresas estatais brasileiras. Cheia de regras, normas,
regulamentos, andava se arrastando. O ódio dos Beatles foi tanto que sempre que
podiam eles iam gravar no Trident ou no Olympic. O autor do livro diz que Abbey
Road simboliza a pancadaria entre os quatro Beatles.
Por exemplo, o álbum “Abbey Road” ia se chamar “Everest”, mas o custo de levar a banda até o monte para fazer as fotos de capa e divulgação tornou o nome inviável. Foi quando Ringo Starr sugeriu algo do tipo “bota o nome disso aqui mesmo”, e nasceu o título Abbey Road. A sessão de fotos para a capa, ícone da cultura pop, durou 20 minutos. Como os músicos mal se falavam (Paul e George estavam a beira da porradaria) fizeram a foto ali mesmo, na rua. O fotógrafo Ian Macmillan foi chamado e eles saíram de repente num dia de sol. Muito simples, nada planejado.
Junho deste ano, em Porto Alegre
O livro
Desde as primeiras gravações a relação entre Paul e
George não era boa. Geoff narra que o guitarrista não sabia tocar direito e,
por isso, Paul o substituiu em vários momentos. George ficou tão infeliz que
passou a ser o último a chegar e primeiro a ir embora das gravações. Ele
praticamente não participou de “Sgt. Pepper”. A tal ponto que quando John, Paul
e Ringo terminaram a exaustiva gravação de “A Day in the Life”, no dia seguinte
Lennon disse para Harrison “parabéns, George. Você perdeu a gravação de nossa
melhor música”.
O autor do livro diz que George viu nos instrumentos
indianos uma fuga, uma forma de esconder sua condição de músico menor, mas
reconhece que a partir do “Álbum Branco” ele amadureceu, evoluiu e se tornou um
dos grandes guitarristas do mundo.
Por falar em “Album Branco”, o que não falta é bizarrice.
Ringo abandonou a banda, sumiu, todo mundo iplorou e ele voltou semanas depois.
Para não se verem, os Beatles gravaram em três estúdios da Abbey Road, cada um
em um. Ringo ficava alternando. Poucas semanas antes, John e Yoko sofreram um
grave acidente de carro na Escócia e quando chegou, o casal quis colocar a
carcaça do carro destruído em frente a sua casa como uma escultura.
Geoff Emerick lembra que numa tarde, vários homens de
macacão apareceram no estúdio um, onde os Beatles gravavam o “Álbum Branco”.
Ninguém entendeu quando os homens transportaram um grande objeto embrulhado que
acharam ser um piano. No uniforme deles constava a logomarca da 'Harrods', uma
das maiores lojas de departamento do mundo onde se encontra de tudo, de picanha
fatiada a calota de Kombi. Os homens desembrulharam uma...cama. Cama para Yoko
Ono repousar por causa do acidente, colocada no estúdio. Como não desgrudava de
John (Geoff conta que iam até ao banheiro juntos), ela recebia amigos de um
lado enquanto os Beatles tentavam gravar do outro. O tormento Yoko Ono tem
dezenas de episódios inacreditáveis.
Lennon estava viciado em heroína no “Álbum Branco”. Tanto
que depois da gravação foi se tratar e durante o tratamento compôs “Cold
Turkey”, apelido das crises de abstinência sem a heroína:
“(...) A febre é alta
Não consigo ver nenhum futuro
Não consigo ver nenhum céu
(...) Eu queria estar morto
(...) Meu corpo está doendo
(...) Não consigo ver corpo algum
(...) Me deixe em paz
(...) Meus olhos estão abertos
(...) Não consigo dormir
(...) Trinta e seis horas
Rolando de dor
Rezando para alguém
Me liberte novamente
(...) Oh, eu serei um bom garoto
Por favor, me faça bem
Prometo-lhe qualquer coisa
Me tire deste inferno
No meio das gravações do “Álbum Branco”, diante de tanto
azedume, baixarias e falta de respeito entre os Beatles, Geoff Emerick se
demitiu do disco. O único que foi tentar demovê-lo foi John, que quase
implorou, falando da importância do engenheiro para a banda desde o início,
etc. George Martin também tentou argumentar, mas não adiantou. Era uma
quarta-feira e ele foi pescar. Só retornou a EMI na segunda feira seguinte para
trabalhar com outros artistas.
Muitos meses depois vou chamado as pressas para
salvar “Let it Be” e gravar “Abbey Road”. De vez em quando era chamado para
resolver algum problema nas gravações de “Yellow Submarine”.
“Let it Be”. A EMI contratou Glyn
Johns para produzir algumas faixas, mas não gostaram e ele foi
demitido. George Martin, cada vez mais acuado, cansou de tentar apagar os
incêndios. Foram gravar no estúdio Trident e semanas depois, quando ouviram as
gravações em Abbey Road o som estava péssimo. Incompatibilidade de
equipamentos. Um desesperado Paul McCartney caçou Geoff Emerick que disse que
muita coisa teria que ser refeita. Chamaram Phil Spector que tentou, tentou mas
acabou arquivando “Let it Be” numa prateleira.
Partiram para a gravação de
“Abbey Road”, mas já sem Lennon. Geoff voltou a engenharia de som e salvou “Let
it Be”, que acabou saindo antes de Abbey Road. O livro traz, também, muitas informações técnicas
importantes, pelo menos para mim. Por exemplo, antes de começar a gravar
“Revolver” Geoff Emerick ele sugeriu que Paul McCarteney substituísse seu baixo
alemão Hofner, aquele com formato de violino, por um Rickenbacker, bem mais
potente. Macca adorou e passou a usar o Backer nas gravações a partir dali. Ele
diz que o empenho quase neurótico de Paul McCartney e o som do Rickenbacker
fizeram com que os Beatles tivessem o melhor som de baixo em gravações de
discos de rock.
O jornalismo chama de fonte primária pessoas que
vivenciaram fatos. A história de Geoff Emerick é importante para quem gosta,
conhece e até é fanático pelos Beatles. Um livro que testemunha a intimidade da
banda genial que ajudou a mudar a história do Século 20.
Que descanse em paz. Fez muito pela cultura do século 20.
Valeu, Geoff!