A Meritocracia Negra - artigo de Antonio Ernesto Martins
Existe um contrato social, nos
bons termos de Rousseau, vigente em nossa civilização contemporânea que dá ao
estado a prerrogativa do monopólio do uso da força para garantia dos direitos
dos cidadãos e preservação do cumprimento de seus deveres. Podemos até alegar
que não somos signatários de nenhum contrato, mas esperamos que esse privilégio
estatal seja utilizado em nossa defesa sempre que nós, nossa família ou nossas
propriedades forem ameaçadas. Dessa forma, depositamos no braço armado do
estado com seu poder de polícia a confiança de que essa força seja exercida na
defesa do respeito aos direitos individuais e na preservação da ordem.
Mas o que fazer quando esse
contrato é quebrado como no caso da prisão do ator, vendedor e psicólogo
Vinícus Romão? Como não se indignar diante de uma injustiça praticada
justamente por aquele ator estatal que deveria defender-nos dessas
barbaridades? Vinícius após uma temporada de 16 dias na cadeia, preso
injustamente através de um procedimento policial ilegal, evita falar
diretamente em discriminação racial. Mas basta olharmos com um pouco mais de
atenção para nossa sociedade para verificarmos que nossa extrema desigualdade,
econômica, de oportunidades e de representações, tem raízes aprofundadas nas
questões racistas e no legado da escravidão.
O coturno na porta do barraco, o
tapa na cara nas vielas escuras das periferias, o desrespeito sistemático aos
direitos humanos, têm alvo certo e a truculência policial quase sempre é
disparada como um projétil teleguiado e programado para atingir a cor da
pobreza. E a cor da pobreza brasileira é essencialmente negra. Basta andarmos pelo centro do Rio de Janeiro
para verificarmos a grande predominância de brasileiros negros na população
invisível dos moradores de rua. Predominância proporcionalmente inversa nas
arquibancadas do Maracanã por ocasião da decisão da Copa das Confederações.
O antropólogo Luiz Eduardo Soares
me contou que prepara um trabalho no qual, com o costumeiro brilhantismo de sua
mente acostumada a fazer conexões extraordinárias entre a academia e as
periferias, vai se debruçar sobre os fatores históricos e políticos que
nortearam a inserção do elemento negro na nação brasileira e que explicam, sem
justificar é claro, a divida social impagável que nosso país tem para com esses
cidadãos por tanto tempo submetidos a uma subcidadania.
Nesse aspecto histórico do
problema vejo que a meritocracia impregnada no pensamento do senso comum
brasileiro legitima não só a desigualdade como também determinadas ações do
estado marcadas pelo arbítrio. É comum o pensamento de que quem está
socialmente fragilizado chegou aonde fez por merecer.
Não se empenhou, é fraco
de caráter, e merece castigo. As intransponíveis barreiras sociais e políticas
que separam as classes são vistas como obstáculos autênticos e válidos dentro
dessa meritocracia que admite preconceitos e orienta políticas públicas.
Apoiados nesse pensamento agem desde os justiceiros aos maus policias,
abençoados por grande parte das elites. Mas o mais cruel é que esse raciocínio
não é monopólio das elites e torna-se ainda mais vil quando é disseminado entre
as populações mais carentes, vitimas dessa lógica.
Assim fiquei surpreso, mas
resignado, quando ouvi em uma conversa entre um trocador de ônibus e um
passageiro – ambos negros – a seguinte afirmação: “Também né?...um negão na rua
de noite...com aquele cabelo...tá pedindo pra rodar, né?”
Vinícius Romão quebrou a barreira
da segregação racial velada que existe no Brasil. É um negro com curso
superior, trabalho formal e família estruturada. E talvez por isso tenha
conseguido sair desse episódio absurdo sem marcas mais profundas. Mas muitos
outros Vinícius ainda podem estar na cadeia, injustamente presos aos grilhões
sociais que substituíram as correntes dos senhores de escravos. E por serem
negros e nunca terem atuado em uma novela da TV Globo não irão causar espanto
aos meritocráticos de plantão.
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