Bonnie
O acaso me fez encontrar com três amigos, que foram
promovidos a grandes amigos, numa rua qualquer naquela semana. Eu já andava
cheio dos ególatras, interesseiros, parasitas que só investem em amizade de
conveniência achando que somos babacas. Tudo bem, eventualmente sou um babaca
mesmo, mas naquela semana eu estava com a faca nos dentes.
Eles me convidaram desleixada e afetuosamente, “vamos passar
o resto do verão naquela aldeia praiana. Alugamos uma casa lá e um dos caras
não vai poder ir.”
Comuniquei as férias (vencidas) no trabalho, passei em casa,
amontei umas roupas. Partimos em dois carros, saindo por volta das 10 da noite,
uma viagem que durou umas seis horas pois paramos em várias biroscas para bater
papo.
Eu não estava habituado ao saldo positivo de tempo. Naquela
noite sobrava tempo, mas as vezes, no meio da conversa movida a gargalhadas
sentia a incômoda presença do fantasma da culpa até lembrar que estava de
férias.
Na reta final, quase chegando a aldeia, achei que um caminhão
vinha em sentido contrário, mas era Vênus, imponente no meio daquele céu azul
petróleo banhado de estrelas. Vênus ficou em nosso horizonte alguns mágicos
minutos, até dobrarmos a direita numa estrada secundária que levava diretamente
a aldeia.
Chegamos e nem desfiz a mala. Simples. Duas calças jeans, bermudas,
camisetas, sandália, tênis, sunga, escova de dente, Omo, etc e lá no fundo, bem
no fundo, a fita com “Bonnie”, do Supertramp, que havia gravado meses antes como
uma espécie de mantra e estava perdida. Ela acabava e recomeçava, acabava e
recomeçava. Peguei. Peguei e logo que coloquei a rede nos ganchos da varada,
liguei “Bonnie” num micro system de um dos amigos, no meio daquele resto de
noite de um lado e início de amanhecer do outro, com direito a brisa soprando e
ruído do mar de encontro as pedras, perto dali.
Acordei com o sol na cara, quente, implacável. Eram umas 10
da manhã e quase me arrastando fui para o quarto onde liguei na tomada meu
bravo ventilador Britania, que morava no porta malas do carro. Dormi. Dormi pra cacete.
A tarde, fomos almoçar numa birosca que servia o melhor e
mais barato filé de cação da região, com arroz agulhinha e brócolis de
acompanhamento. Dali, praia, mar translúcido, areia deserta. Um dos amigos
tinha levado o seu pranchão de windsurf, um esporte que existiu entre os anos
80 e 2000, se não me engano.
Pusemos a prancha no mar sem ondas, eles colocaram a vela e
começaram a velejar. Não sei nem nunca soube velejar porque tenho preguiça de
aprender, apesar de achar fantástico. Os caras eram feras e no fim da tarde
pararam. Na beira d’água, tirei a vela da prancha, amarrei num pedregulho (como
âncora) e deitei de costas, boiando como Zorba, o Grego.
As 11 da noite retornamos para a casa, a uns 60 metros dali.
Eles pediram e para minha alegria dei play na fita de “Bonnie”, que rolou mais
um tempão. Fizemos e devoramos um churrasco de picanha. Depois, em duas motos
fomos para uma espécie de centro da aldeia e entramos num dancing bem simples,
com frequentadoras locais e também de fora, maioria de São Paulo e Minas.
No dia seguinte, sem dormir, peguei uma das motos e percorri
a beira d’água por vários e incontáveis quilômetros, rumo ao norte. Em algum
lugar parei, mergulhei, deitei na areia e dormi. Acordei com o sol quase se
pondo. Mergulhei de novo. Depois, liguei a moto e retornei.
E assim o verão “Bonnie” foi cavalgando. Tudo muito devagar.
Dias depois já estávamos pretos por causa do sol, e barbudos por desleixo
proposital. Numa das noites maravilhosas e transcendentais, quando todo mundo
havia saído (com algumas outras garotas do dancing), preferi ficar sozinho.
Deitei a vela da prancha de windsurf no gramado, liguei
“Bonnie” e me atirei nas estrelas e satélites que passavam naquele impressionante
firmamento que misturava azul petróleo com prata. “Deus existe”, pensei várias
vezes. Pensei e prometi a mim mesmo mudar algumas coisas em minha vida. Um simples
acordo com aquelas noites abençoadas que, de cara, me deram de presente três
amigos extraordinários.
Passamos todo o final do verão lá naquela aldeia, como
primatas. Retornamos muito amigos. Um deles seguiu a pé para a Cordilheira dos
Andes e o outro pegou um voo para o México, onde estava estudando os peiotes de
Carlos Castaneda. Eu e o terceiro amigo ficamos por aqui mesmo e toda vez que
nos encontramos falamos de “Bonnie”.
Como não?
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