Arembepe conhece mais Gilberto Gil do que Caetano Veloso. Arembepe conhece mais Caetano Veloso do que Gilberto Gil.
Texto escrito no local em 1999.
Quando pisei o imenso areal de Arembepe, sol de verão, senti que a
constante brisa vinda do mar contava histórias. Arembepe, litoral norte da
Bahia, tem necessidade compulsiva de falar pois foi naquele éden de coqueiros,
piscinas naturais, dunas, nuvens variadas passando em alta velocidade, como nos
filmes de Glauber Rocha e Oliver Stone,
que a Tropicália se afirmou no final dos anos 60. Arembepe foi o grande
desbunde, o desnude, o nosso Woodstock político, nossa Cuba musical.
Beijo a areia quente de Arembepe,
pedindo licença a Iemanjá que zela por todo o mar da Bahia. Faço reverências ao
Senhor do Bonfim, cuja igreja em Salvador havia visitado no dia anterior. Lá
dentro, ajoelhado por mais de 40 minutos, fiz dois únicos pedidos que foram
atendidos. E enquanto meditava, no silêncio quente daquela igreja, vi a imagem
de Arembepe desfilar em minha cabeça, como se o Senhor do Bonfim me convidasse
ou sugerisse. Olho para as cabanas hippies, de dois, três andares, feitas de
sapê. Arembepe foi tombada, ninguém mexe. Ando pela areia, o sol carinhoso
ardendo em meus ombros, a duna. A maior de todas. Penso, quem sabe foi aqui que
José Celso Martinez Correia declamou o Rei da Vela? Quem sabe é essa duna o
santuário sagrado de uma gente que um dia acreditou num Brasil revolucionário?
Ou ainda há quem discuta o teor revolucionário de Gil, Caetano, Glauber e Zé
Celso? Será?
Entro nas cabanas, ocupadas por uma
tribo de vagabundos inofensivos que insistem em dar continuidade ao sonho
hippie, fuzilado nos anos 70. São cabeludos e guardam na parede um violão de
Raul Seixas. Batizaram de “Rancho Janis Joplin” a maior de todas as cabanas.
Ela esteve lá, dormiu lá. Mas minha cabeça está em 1969, no Brasil de 1969,
quando Carlos Lamarca, o capitão da guerrilha, largou a farda oficial e
mergulhou na clandestinidade para fazer a nossa revolução.
Não, ao contrário do
que andaram dizendo, Lamarca não passou alguns dias em Arembepe quando tentava
escapar da repressão. Ele rumou direto para o sertão da Bahia, enquanto sua
companheira Iara, cercada por batalhões do Exército e policiais do Dops, comandados
pelo delegado-facínora, o Doutor Tortura Sérgio Paranhos Fleury, cercava o
apartamento para onde fugiu, em Salvador. Iara se matou. Tiro na têmpora
direita. Arembepe conta tudo, com a suavidade que as baianas tem quando contam
uma longa e profunda história. Aliás, não conheço histórias que não sejam
longas e profundas na Bahia, e talvez por isso eu ame visceralmente aquela
terra.
Percorro a aldeia hippie, fotografo
tudo, fotos de todos os ângulos. Penso em Jorge Mautner e João Ubaldo Ribeiro.
Onde estaria João Ubaldo Ribeiro quando Arembepe vivia o seu auge
revolucionário? Provavelmente fazendo a sua parte na revolução, lá em Salvador,
pois João Ubaldo, por si só, já é uma revolução, o mais brasileiro dos
escritores brasileiros, o mais baiano dos cariocas, o mais carioca dos baianos,
um dos mais corajosos brasileiros que conheço. Olho para a duna e ela me diz
que pode ser que João Ubaldo tenha participado dos happenings
artísticos/políticos do final dos 60 em Arembepe. Janis Joplin cantou do alto
dessa duna em 1970, um de seus últimos sinais de vida pois morreria meses
depois. É mentira, mas deixa a lenda lendar. O LSD rolava solto por entre os
troncos e coqueiros, mas alguém sempre lembrava o ideal revolucionário, que era
preciso libertar o Brasil. Ousar lutar, ousar vencer, escrevia sempre Lamarca.
No final dos 60, quem não ia para a luta armada desbundava e virava hippie, ou
se ajoelhava perante seus santuários pequeno-burgueses e vivia o “Brasil, ame-o
ou deixe-o”, engordando o vergonhoso rebanho servil nacional, os tais 90
milhões em ação, dopados pelo ópio dos gramados.
O mergulho no mar de Arembepe parece
uma viagem alucinógena. Não vou descrever o mar de Arembepe pois não quero
divulgar muito aquele lugar. Arembepe resistiu aos hippies, a repressão
política, moral, resistiu a especulação imobiliária, mas certamente não
resistiria ao turismo predatório e seus resorts, jet skis e cocaína. O violão
de Raul Seixas está em destaque numa das cabanas, onde os remanescentes hippies
fazem artesanato. Por onde anda o Raul? Em qual dessas nuvens ele estará? Por
que não guardaram também os inúmeros manifestos revolucionários que foram
escritos em Arembepe? Porra, ninguém se lembrou. Ou fazemos a revolução ou
escrevemos sobre ela. As duas coisas ao mesmo tempo não dá. Sento debaixo de um
coqueiro, de frente para o mar, tomado de comoção e História com H maiúsculo.
Uma mulher linda, morena de olhos
verdes, completamente nua, me pede fogo em italiano. Sua cona inchada, a 40
centímetros da minha boca, tem um piercing sobre os pelos lisos e vastos.
Acendo meu Zippo, que acende o baseado dela. A italiana agradece seca, fria, e
volta ao mar para comer seu rastaman, numa das milhares de piscinas verdes que
os recifes de Arembepe produzem. Glauber não descaralhou à toa com Arembepe.
Ele tinha razão. Mais razão ainda quando filmou algumas imagens soltas em preto
e branco. Em preto e branco Arembepe fica mais nua pois a história da nossa
revolução, da luta armada de Carlos Lamarca, não era acrilírica, e muito menos
multicolorida. Os anos eram de chumbo e a cor do chumbo é a cor das tumbas.
Eventualmente o astral de Arembepe
pesa. Muita gente que falou, cantou e escreveu ali foi caçado, torturado e
morto pela ditadura. Ou enlouqueceu num pau-de-arara, levando choque elétrico,
sendo obrigado a confessar histórias que na maioria das vezes não existiam. E
me parece que essas almas vagam em Arembepe, ainda tontas, ainda sem entender
porque ser brasileiro dava pena de morte no final dos 60.
E a ditadura matava porque gostava de
matar. Arembepe me conta que a ditadura se transformou em serial killer por
prazer, por gozo, por covardia. E ninguém conseguiu matar Sérgio Fleury,
símbolo-maior da nossa dor, e pendurar sua cabeça num coqueiro de Arembepe,
como um troféu em nome da grandeza humana. Não fossem os erros de Carlos
Marighella e seu ego gigante, onipotente e vaidoso, Lamarca teria justiçado
Fleury pois estava nos seus planos. E os planos de Lamarca eram de liberdade,
justiça, amor a pátria. Foram para o ralo porque a VPR rachou, a ALN rachou, o
MR 8 rachou, Polop rachou, a esquerda toda rachou no momento em que deveria
estar unida como gladiadores lutando contra o imperador. Mas a direita não
rachava. Não rachava e matava. E matou toda a esquerda brasileira, deixando
apenas algumas migalhas teóricas em agonia. Arembepe diz que a culpa foi do
PCB, que traiu a luta armada. Mas esse fato a história ainda está julgando.
A densidade política de Arembepe não
me permite pensar em outra coisa a não ser no Brasil sonhado por Lamarca, por
mim, por muita gente. Se eu pudesse inserir uma trilha sonora nos meus
devaneios em Arembepe seriam duas músicas: “That´s Way” do Led Zeppelin e
“Voodoo Chile” de Jimi Hendrix. Não me perguntem porque. Eu senti essas músicas
pairando no ar e no mar de Arembepe o tempo todo. E a imagem de Zé Celso
Martinez Correia, e de Caetano esquelético, cabelo encaracolado, barbudo, de
Gil também black power, e de Janis, e de Raul, e de Mautner, e de Luiz Carlos
Maciel, meu Deus, tanta gente. Tanta gente sonhou com a revolução que
fracassou. Aquela nós perdemos e ponto final.
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