22:00

Dez da noite que parecem quatro da madrugada.


De todas as noites desde o início da quarentena, está sendo a mais solitária.

Sinto saudade.

Saudade dos meus voos noturnos pelas artérias da cidade de bicicleta, observando a luz cúmplice dos abajures nos andares mais baixos.
Sombras eventuais.

O silêncio da bicicleta nos faz invisíveis. Ano passado, por volta das duas da madrugada, percebi os sons de uma mulher gozando.

Parei.

Meio que embaixo de uma árvore.

Os sons ficaram mais altos, lancinantes, palavras descoxas afogadas na mais pura e vadia luxúria, pairavam sobre os cabos de alta tensão. E depois davam voos rasantes em direção a meus ouvidos.

Música.

Parecia música.

Foi longo, muito longo. Ela arfou alto, arfou médio, arfou baixo. Fez-se silêncio.

Pedalei.

Pedalei excitado, não com os gritos daquela mulher que sequer sabia em que buraco daqueles pombais – chamados prédios – estava metida.

Imaginei o que ela podia estar desejando fazer além daquilo tudo; as fêmeas são infinitas.

Ponto.

Estão dizendo que depois disso tudo que não está acontecendo um novo mundo virá, mas neste momento todas as ruas, avenidas, vilas, todas as praias, ilhas, coberturas, favelas, tudo está deserto. E triste. 

Pelo menos hoje. Pelo menos para mim.

Até quando?

Ninguém sabe.

Nesses longos e mais longos e mais longos dias de reflexão imposta não é possível que a síndrome do “nada será como antes” não bata em uma maioria.

Ou será como na crise dos mísseis, 1962, quando o mundo quase acabou quando Rússia e Estados Unidos decidiram apertar os botões vermelhos de suas ogivas por causa dos mísseis nucleares em Cuba?

Ao longo de 13 dias as pessoas da América de cima se despediam umas das outras porque o mundo ia acabar mesmo.

Só não foi um caos mundial porque as comunicações eram quase sinais de fumaça. Fora dos EUA e Europa, pouco se sabia.
Aqui, que delícia, nadávamos em bossa nova. Sol, sal, sul sentindo o cheiro dos Beatles que estavam a caminho.

Mas os 13 dias, que viraram livros, filmes e teorias conspiratórias, passaram a mensagem clara do mundo a caminho da extinção: eu te dei a liberdade, você optou pela moral. Resta-lhe o mofo.

Kennedy e Khrushchov não apertaram os botões. Há quem diga que foi milagre, há quem garanta que o Papa João 23, numa missão secreta, teria se envolvido pessoalmente na história.

Alívio.

Nada será como antes, decidiram milhões, embalados por “A Hard Rain’s A-Gonna Fall”, épico que Bob Dylan escreveu para aqueles 13 dias.

No dia seguinte, tudo voltou a ser como anteontem.

11 de setembro de 2001. Atentados em série às Torres Gêmeas, Pentágono, seria um novo fim do mundo?

Nada será como antes.

Uma semana depois, de novo o anteontem.

Agora esse apagão geral, planetário. Coronavírus. O mais radical da história contemporânea ou, da história em si.

E mesmo na quarentena, nos capítulos iniciais desse filme que não sabemos quem escreveu, quem dirige e muito tempo quanto tempo vai durar, volta o mantra. Nada será como antes.

A solidão...sentou-se no pé da minha cama, olhar de soslaio, fumando numa piteira de marfim, eu fingi que não vi, fechei os olhos e, intimamente, decidi.

Nada será como antes.

Mesmo.


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