Obscuro objeto do desejo
Minha paixão por motocicletas não tem explicação, mas ela
brotou como peiote nos desertos do México, logo que fui proibido
de andar num ciclomotor de um amigo. A marca era Velosolex.
A preocupação dos meus pais fazia sentido por causa da minha
irresponsabilidade em insanas acrobacias de bicicleta - com direito a visitas hospitalares
com relativa frequência - aliada a uma suspeita de déficit de atenção. Soma-se
a isso a fama de maluco que alguns vizinhos tentaram me jogar nas costas pelo
conjunto da obra, especialmente o volume e o tipo de música que ouvia.
Proibida para mim como muitos filmes, músicas, livros,
peças de teatro para todo mundo (era ditadura, etc) pouco a pouco a motocicleta foi se transformando
em meu obscuro objeto do desejo, aqui uma homenagem inconsciente a Buñuel. A
motocicleta tornou-se desejo tórrido, curiosidade vã pelo proibido como buraco
da fechadura, casas de ópio, Carlos Zéfiro, mescalina de Dom Juan, personagem
de Carlos Castaneda.
A medida em que fui voando mais e mais nos ciclomotores emprestados, um amigo de outro bairro ganhou uma Yamaha 125 zero KM, azul, na época
importada do Japão (estamos em 70 e tal). Poucos anos depois ele bateu com a
moto e partiu. Foi horrível.
Quando vi aquela Yamaha, o desejo me deu um solavanco. Queria voar naquela obra de arte da época, a qualquer preço. Tanto que propus
um aluguel. Eu andaria duas horas em troca de um tanque de gasolina (uns 10
litros) e ó óleo da mistura do nervoso motor de dois tempos. O cara topou. Eu já colaborava para um jornal
local que me rendia uma graninha razoável, que botei toda no estranho aluguel.
Sem lenço, documentos, capacete, de bermudas, menor de
idade, senti coisas inconfessáveis montado naquela 125 (na época, o must) que voava baixo e, defeito
maior, tinha um péssimo freio. Já havia lido que aquele modelo não era confiável,
“meio vadia”, me disse um mecânico, mas eu relevei. Relevei até um mês depois, num fim de tarde quando saltava com ela sobre um pequeno morrote lá em Ponta Negra. Sem mais nem menos, a moto
resolveu não freiar, rodou, embicou para um matagal e desabou num canal. Rolei para um
matagal ao lado, sensação de pânico, sentindo que estava sendo esfolado.
Permaneci alguns segundos deitado, olhos abertos,
pensando nas coisas de sempre: será que morri? Será que me arrebentei todo? E a
moto, como estará?Levantei e manquei forte. A perna direita estava com
um lanho de sangue, o braço direito também, raspão na testa, o que vulgarmente
é conhecido como “escoriações generalizadas”. Mancando, fui ver a moto, emborcada no canal.
Tanque arranhado, um amassado forte no paralama dianteiro e outros detalhes que
só percebi depois.
Parou um carro na estrada. Polícia. Pediram os
documentos da moto (zero), minha carteira de habilitação (zero), identidade
(mostrei a carteira do colégio), eles gentilmente (não é deboche) me levaram
até um pronto socorro (hoje rebatizado de pronto atendimento) onde fiz os
curativos (um outro policial levava a moto) e depois me convidaram para ir a delegacia. Pediram o telefone de casa, para
avisar a meus pais ou responsáveis. Descolori. Dei o telefone mas o policial
não ligou, só me dava esporros em sequência.
Confesso que meu maior temor não era ir em cana e nem de
causar aquela enorme decepção caso meus pais realmente fossem convocados para
ir lá. O meu maior temor era a possibilidade de levar uma multa porque desde a
tenra idade tenho horror de dar qualquer grana para o governo, da forma que for, uma
pregação constante de meu avô, sócio do clube “se é governo, sou contra”, que
me impregnou. Hoje piorou.
Depois da lição de moral e cívica, o policial resolveu me liberar e o mesmo sujeito que havia levado a
moto para a delegacia a conduziria até a estrada, RJ – 106. Lá eu deveria subir na Yamaha e sumir.
Continua outro dia
porque está grande demais.
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