Uivo, de Allen Ginsberg, uma afável homenagem ao dia de amanhã, eleição


Publicado em 1956, "Uivo" tornou-se no manifesto da "Beat Generation" norte-americana. Leia aqui a primeira parte do célebre poema de Allen Ginsberg, numa tradução de Margarida Vale de Gato.

Ginsberg foi preso após a primeira leitura de “Uivo” numa livraria de San Francisco. Foi julgado e condenado por violento atentado ao pudor.

Em português de Portugal

Para Carl Solomon*
                                        I
Eu vi as mentes mais brilhantes da minha geração destruídas pela loucura, famintas histéricas nuas, a arrastaremse na aurora pelas ruas de negros em busca de uma dose feroz, gingões de angélicas cabeças ardendo pelo velho contato celeste com o dínamo estelar na maquinaria da noite, que de miséria e andrajos e olhos cavos e alucinados se sentavam a fumar na penumbra sobrenatural de quartos de águas frias flutuando pelos cumes das cidades contemplando o jazz, que esventravam os cérebros aos céus sob a ascensão do metropolitano e viam anjos maometanos ziguezagueando nos telhados de prédios iluminados, que passavam pelas universidades com olhos de radiante lonjura a alucinar o Arkansas e a tragédia à luz de Blake entre os catedráticos da guerra, que eram expulsos das academias por demência & publicarem odes obscenas nas janelas do crânio, que se agachavam em quartos com a barba por fazer em roupa interior a queimar dinheiro nos cestos de papéis e a escutar o Terror através da parede, que eram filados pelas barbas púbicas quando regressavam via Laredo com marijuana à cintura para Nova Iorque, que comiam fogo em pensões esconsas ou bebiam aguarrás no Beco do Paraíso, a morte, ou batiam com as costas no purgatório noite após noite, com sonhos, com drogas, com pesadelos acordados, álcool, caralhos, piças, bolas sempre a abrir, incomparáveis ruas cegas sem saída de nuvens convulsas e relâmpagos na mente galgando aos polos de Canadá & Paterson, iluminando o mundo todo imóvel do Tempo entre, solidezes de átrios sob peiote, madrugadas sepulcrais de árvores verdes de quintais, bebedeira de vinho nos telhados, montras de bairros comerciais a tripar com a moca no semáforo piscando de néon, vibrações de sol e lua e árvores nos crepúsculos de inverno e vendavais de Brooklyn, vociferações sobre latas de cinza e lixo e o sopro brando soberano fulgor da mente, que se amarravam aos metros para a interminável viagem desde a Battery ao santo Bronx anfetaminados até o barulho das rodas e crianças os trazer à terra convulsos de bocas escoriadas e esfolados de cérebro todos escorridos de brilho à fera luz da estação terminal do Zoo, que se afundavam a noite toda à luz submarina de um Bickford’s daí flutuando e ficando pela tarde de cerveja choca no triste Fugazzi’s, escutando o estrondo do Juízo Final na jukebox de hidrogénio, que falavam sem parar setenta horas dos parques aos apartamentos ao bares ao Hospital Bellevue ao museu à Ponte de Brooklyn, um batalhão perdido de conversadores platónicos saltando o gradeado das escadas de incêndio dos parapeitos de janelas do Empire State além da Lua, patatipatateando gritando vomitando sussurrando factos e memórias e anedotas e tripes oculares e choques elétricos dos hospitais das cadeias das guerras, intelectos inteiros regurgitados em recordação total durante sete dias e noites de olhos brilhantes, carne para a Sinagoga atirada à calçada,
que desapareciam para a Terra do Nunca da Nova Jérsia Zen dei

xando um rasto de amb
íguos postais ilustrados da Assembleia Municipal de Atlantic City, sujeitandose aos suores orientais e aos ossos triturados em Tânger e às enxaquecas na China sob uma ressaca de droga no quarto desmobilado de Newark, que deambulavam em círculos à meianoite pelos depósitos das locomotivas incertos sobre onde ir, e iam, sem corações despedaçados atrás de si, que acendiam cigarros em vagões vagões vagões resvalando pela neve para solitárias fazendas na noite do avô, que estudavam Plotino Poe São João da Cruz telepatia e cabala‐‐bop visto que o cosmos vibrava instintivamente aos seus pés no Kansas, que vagueavam sozinhos pelas ruas de Idaho buscando anjos índios visionários que eram anjos índios visionários, que se julgavam apenas loucos quando de Baltimore dimanava um êxtase sobrenatural, que saltavam para dentro de limusinas com o chinês de klahoma no impulso da chuva invernal dos lampiões na meianoite provinciana, que se espraiavam famintos e solitários por Houston buscando jazz ou sexo ou sopas, e iam atrás do deslumbrante latino para conversar sobre a América e a Eternidade, uma tarefa inútil, pelo que embarcavam para África, que desapareciam nos vulcões do México sem deixar nada para trás senão a sombra de umas jardineiras de ganga e a lava e a cinza da poesia pelo braseiro de Chicago, que reapareciam na Costa Oeste a investigar o FBI de barbas e bermudas com grandes olhos pacifistas tão sensuais na sua pele morena a estender folhetos incompreensíveis, que queimavam buracos de cigarros nos braços a protestar contra a tabágica neblina narcótica do Capitalismo, que distribuíam panfletos Supercomunistas na praça pública de Union Square lacrimejando e despindose enquanto as sirenes bombásticas de Los Alamos os desalmavam, reverberando nos muros de lamentações de Wall Street, e também a balsa de Staten Island se lamuriava, que se debulhavam em lágrimas em ginásios brancos nus e tremendo diante da maquinaria dos outros esqueletos, que mordiam o pescoço de agentes da polícia e guinchavam de prazer nos carros da polícia por não cometerem crime que não fosse a sua própria pederastia e intoxicação a fervilhar de loucura, que uivavam de joelhos no metro e eram arrastados pelo tejadilho a acenar com genitais e manuscritos, que deixavam que motociclistas devotos lhes comessem o cu e urravam de alegria, que chupavam e eram chupados por esses serafins humanos, os marinheiros, carícias de amor atlântico e caribenho, que pirocavam de manhã de tarde nos jardins de rosas e na relva dos parques públicos e dos cemitérios espalhando livremente o sémen a quem calhasse vir, que soluçavam sem parar a tentar rir mas acabavam a ganir por trás dum biombo num banho turco quando o anjo louro & nu chegava para os trespassar com uma espada, que perdiam os namorados para as três velhas megeras do destino, a megera zarolha do dólar heterossexual a megera zarolha que pisca o olho do ventre e a megera zarolha que se senta somente com o cuzinho quente e tece os fios de ouro intelectuais do tear artífice, que copulavam em êxtase e insaciáveis com uma garrafa de cerveja uma miúda amorosa um maço de cigarros uma vela e caíam da cama, e continuavam pelo soalho até ao corredor e acabavam a desmaiar na parede com uma visão derradeira de cona e esperma fintando o último fluido fértil da consciência, que melavam as pássaras de um milhão de miúdas estremecentes ao pôr do sol, e de manhã tinham os olhos vermelhos mas a postos de melar a pássara da aurora, de nádegas ao léu de baixo dos celeiros e nus dentro do lago, que andavam ao ataque pelo Colorado numa miríade de carros noturnos roubados, Neal Cassady, herói secreto destes poemas, garanhão e Adónis de Denver recordação de prazerdas suas inúmeras trepas de miúdas em baldios vazios & saguões de cafetarias, filas estreitas das salas de cinema, nocume dos montes em grutas com empregadas de mesa escanzeladas na vulgar ascensão de roupinhas interiores à
beira da estrada & solipsismos especialmente secretos de lavabos de bombas de gasolina, & ainda nos becos da cida
de natal, que se esvaíam em imensos filmes sórdidos, se mexiam em sonhos, despertavam numa súbita Manhattan, e agarravam em si para fora de caves ressacados de impiedosas zurrapas e
horrores de sonhos de ferro da Terceira Avenida & tropeçavam para os guichés do desemprego, que caminhavam toda a noite com os sapatos cheios de sangue nas docas cobertas de neve aguardando que se abrisse uma porta no East River para um quarto cheio de vapor quente e ópio, que criavam grandiosos dramas suicidas nas margens de fragas de apartamentos do Hudson sob o holofote bélico do clarão azul da Lua & terão um dia as cabeças coroadas de louros no oblívio, que comiam o ensopado de borrego da imaginação ou digeriam os caranguejos do fundo enlameado dos rios da Bowery, que choravam com as românticas ruas com os seus carrinhos de mercearia cheios de cebolas e má música, que se deixavam ficar sentados em caixotes a respirar nas trevas debaixo da ponte, e acordavam para construírem cravos temperados nos seus lofts, que tossiam no sexto andar de Harlem coroados de chamas sob o tísico céu rodeados de teologia em grades de laranjas, que rascunhavam pela noite fora embalados de rock and roll com louvores às alturas que na manhã amarela eram estrofes mal paridas, que cozinhavam animais podres pulmão coração patas cauda borscht & tortillas sonhando com o reino da pureza vegetal, que mergulhavam sob os camiões do talho à procura de um ovo, que atiravam os seus relógios do telhado para depositarem votos para a Eternidade fora do Tempo, & lhes choverem despertadores em cima das cabeças todos os dias da década seguinte, que cortavam os pulsos três vezes consecutivas sem sucesso, desistiam e se viam obrigados a abrir lojas de antiguidades onde julgavam estar a envelhecer e choravam, que eram queimados vivos nos seus fatos inocentes de flanela na Madison Avenue por entre rajadas de versos de chumbo & a barulheira enlatada dos férreos regimentos da moda & os guinchos de nitroglicerina das mariquices da publicidade & o gás de mostarda dos editores sinistros e inteligentes, ou eram atropelados pelos táxis embriagados da Realidade Ab
soluta, que saltavam da Ponte de Brooklyn coisa que realmente aconteceu e desandavam de lá desconhecidos e esquecidos na neblina espectral dos becos de sopas & de carros de bombeiros da Chinatown, nem sequer uma cerveja de borla, que se punham em desespero a cantar à janela, caíam da janela do metropolitano, saltavam para o imundo Passaic, pulavam
sobre os negros, gritavam por toda a rua, dançavam descalços sobre copos de vinho em cacos rebentavam discos de grafonola de jazz alemão nostálgico dos anos 30 acabavam com o whiskey e vomitavam a grunhir na retrete maldita, os
ouvidos cheios de lamentações e de tremendas sirenes de vapor, que desciam a toda a brida as estradas largas do passado viajando para o turno da cela solitária de velocidade e estrondo e Gólgotas uns dos outros ou encarnação de jazz de Birmingham, que viajavam pelo país fora setenta
eduas horas sem parar para descobrir se eu tinha uma visão ou se tu tinhas uma visão ou
se ele tinha uma visão para descobrir a Eternidade, que viajavam para Denver, que morriam em Denver, que voltavam para Denver & aguardavam em vão, que olhavam por Denver & amuavam & se isolavam em Denver e por fim se
iam embora para descobrir o Tempo, & Denver tem agora saudades dos seus heróis, que caíam de joelhos em catedrais sem esperança a rezar pela salvação e a luz e os peitos uns dos outros, até que a alma iluminava o cabelo por um segundo, que torpedeavam por dentro das suas mentes na prisão à espera de impossíveis criminosos de douradas cabeças e o encanto da realidade nos seus corações e que cantavam doces blues a Alcatraz, que se retiravam para o México para cultivar um hábito, ou para as Montanhas Rochosas para servir a Buda ou para Tânger a rapazes ou para a Southern Pacific à negra locomotiva ou para Harvard a Narciso ou para o cemitério de Woodlawn à
última floração ou morada, que exigiam exames de sanidade acusando a rádio de hipnotismo & eram abandonados à sua insanidade & às suas mãos & a um júri incapaz de consenso, que atiravam salada de batata aos conferencistas de dadaísmo da Universidade de Nova Iorque e subsequentemente se apresentavam nos degraus de granito do manicómio com cabe
ças rapadas e um discurso suicida arlequinado, exigindo uma lobotomia instantânea, que recebiam ao invés o vazio concreto de Metrazol insulina eletricidade hidroterapia psicoterapia terapia ocupacional pinguepongue & amnésia, que protestando com mau humor derrubavam uma só simbólica mesa de pinguepongue, repousando por instantes catatónicos, regressando anos mais tarde absolutamente calvos à exceção de uma peruca de sangue, e lágrimas e dedos, à visível perdição dos
loucos dos quartos hospitalares das loucas cidades do Leste, os corredores fétidos dos manicómios de Pilgrim State e Rockland e Greystone, gotejando com os ecos da alma, embalando
se de rock and roll nos domínios notívagos de dólmenes e bancos de solidão do amor, sonho de vida de um pesadelo, corpos transformados em pedra tão pesados como a Lua, com a mãe finalmente ******, e o último livro lunático atirado da janela do pardieiro, e a última porta fechada às quatro da manhã, e o último telefone lançado à parede em resposta e o último quarto mobilado despido até ao último pedaço de mobília mental, uma rosa amarela de papel retorcida num cabide de arame no armário, e também isso era só imaginário, nada além de um bocadinho esperançoso de alucinação — ah, Carl, enquanto não estiveres a salvo eu não estou a salvo, e
agora nadas realmente na canja absoluta do tempo — e que por conseguinte corriam pelas ruas cobertas de gelo obcecados com um brusco vislumbre da alquimia do uso das reticências da enumeração da métrica & do plano vibratório, que sonhavam e abriam brechas incarnadas no Tempo & Espaço por meio de imagens justapostas, e encurralavam o arcanjo da alma entre 2 imagens visuais e juntavam os verbos elementares e uniam o substantivo e o travessão da consciência galgando com a sensação de Pater Omnipotens Aeterne Deus para recriarem a sintaxe e medida da pobre prosa humana e se levantarem à vossa frente sem palavras e inteligentes e a tremer de vergonha, rejeitados e todavia confessando toda a alma para se conformar ao ritmo do pensamento na sua cabeça nua e interminável, o louco vagabundo e anjo na batida do Tempo, uma incógnita, todavia deixando escrito aqui o que talvez fique por dizer no tempo por vir depois da morte, e reencarnados se erguiam nas roupas espectrais do jazz na sombra da trombeta dourada da banda e sopravam o sofrimento da mente nua da América pelo amor até um grito saxofonico de eli eli lamma lamma sabacthani que arrepiava as cidades até ao último rádio com o coração absoluto do poema da vida retalhado da carne dos seus próprios corpos bom para comer durante mil anos.

*Carl Solomon (1928 – 1993), a quem o poema é dedicado, foi um dadaísta do Bronx que escreveu poesia em prosa.


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