Relógio Biológico

Duas e 14 da madrugada. Acordo mansamente, sem sobressaltos, apesar do pesadelo. Desde a adolescência só tenho pesadelos. Sonho bom? Raro. Bom, acordo as 2 e 14 como se fosse seis da manhã para um triatleta.

Rondo pela casa, ligo a TV e compro um travesseiro num programa de vendas pelo telefone. Segundo o comercial, o tal travesseiro é um néctar de penas de ganso capaz de corrigir todos os problemas de coluna. O locutor diz que com esse travesseiro temos um sono “reparador”. Só não prometeu que acordamos ao som de canários belgas porque a empresa fica aqui no Brasil, onde a natureza está em rápida extinção. Garantiu que quem não ficasse satisfeito com o travesseiro teria seu dinheiro de volta. Os caras são craques. Duas e 14 de um dia de semana é o momento ideal para veicular um anúncio de travesseiro. Liguei, passei o número do cartão de crédito.

Tem gente que fica muito angustiada quando acorda no chamado “meio da noite”. Como para mim é rotina, não sinto nada. Apenas uma certa impaciência, apesar da calma da madrugada, telefones mudos, celular calado, o famigerado whatsapp quieto. Tanto que já escrevi até aqui se interrupção.

Já li e ouvi muito sobre o chamado relógio biológico. Aparentemente durmo mal, mas uma vez li numa revista de ante sala que o tipo de sono que tenho se chama “flash”. Durmo e acordo várias vezes. De fato não é tão bom quanto o sono sem escalas, aquele que você deita a meia noite e acorda as oito na mesma posição, que nem me lembro mais como é. Mas o fato das comunicações estarem a minha disposição de madrugada me trouxe esse vício. Posso dar um giro pela internet sem ser importunado, sapatear nos satélites, conversar com o Congo. De madrugada tenho a sensação de que posso fazer tudo porque tudo funciona.

Meu relógio biológico é oportunista e prático. Em geral durmo cedo sexta e sábado para, quem sabe, atravessar o dia seguinte na praia. E praia vou o ano inteiro porque concluí que não existem praias feias com chuva, com tempo nublado ou em plena tempestade. 

As praias são lindas de qualquer jeito. Em Itaipu quando chove e o vento traz aquela bruma branca ela parece com a costa da Escócia, que conheço via cinema. Nos dias frios, de céu azul profundo, lembra a Indonésia. Já sob densa tempestade lembra a capa de “Love Over Gold”, um dos grandes discos do Dire Straits. É por isso que tenho certeza de que Itaipu é a mais gostosa das filhas de Ryan.

Não sei se o fato de trabalhar 13 horas por dia interfere no meu relógio biológico. Há quem diga que isso é estresse. Só que eu nunca estou estressado, eu sou estressado. Já me chamaram de masoquista, que despendo muita energia, etc. Anos atrás experimentei ficar sem fazer nada durante três meses. Larguei tudo. Em menos de 20 dias estava de volta ao jornal, de joelhos, pedindo perdão. Nunca me senti tão mal na vida. Dormia o dia inteiro, comia pouco, tinha sonhos melancólicos, porra que depressão! Isso sim é masoquismo. No dia em que levantei para voltar ao jornal, fui fazer a barba e vi, no espelho, que estava com aquele semblante típico dos “à toas”. O suor cheira a naftalina, cobertor das Casas Pernambucanas.

É evidente que não pretendo fazer apologia do sono “flash”, da popular e temida insônia. José Maria Monteiro de Barros (saudade desse meu amigo) me fez observar com calma as aves e mamíferos. Fora as criaturas da noite, todos se recolhem no crepúsculo e se levantam na alvorada. Leio na Wikipédia que os primeiros homens dormiam cedo e acordavam cedo. O que me assustou no texto foi a média de vida deles: 17 anos.

Essa lenda de relógio biológico só deve ser terrível para as pessoas que não gostam de dormir de dia ou sofrem amargamente com a solidão. Quem vira uma noite tem que se habituar com dois sons altamente depressivos: 1) Caminhão de leite; 2) Canto dos pardais e bentevis. Já quem convive mal com o dia e ama a noite é obrigado a engolir outros dois sons, também tristíssimos, de fim de tarde: 1) Canto de cigarra; 2) Sirene de obra informando que o acabou o expediente. É horrível

Já tentei acertar meu relógio biológico para ficar mais próximo da lânguida rotina da humanidade. De 1974 a 1976 trabalhei no horário das 5 da manhã ao meio dia. Jornalismo tem dessas coisas. Uma ótima oportunidade para acertar o tal relógio. Não deu. 

Chegava em casa, tomava um banho, almoçava e dormia até as seis da tarde. A noite caia na gandaia, ou para a faculdade, que eram mais ou menos a mesma coisa. Mas pouca coisa foi pior do que uma noite em que acordei as 3 horas da madrugada numa pousada na serra da Bocaina, sem luz, sem livros (ler à luz de velas é terrível) e, ainda por cima, chovendo. Confesso que sofri. Sofri mais ainda com o barulho de um rio que me deixou alucinado, com uma estúpida vontade de desligá-lo. 

Relógio biológico não é atômico e muito menos um Rolex automático. O meu é um paraguaio, desses de camelô. E com licença que já são quatro da matina e preciso rever “Apocalypse Now Redux”, no DVD.


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